TERMO INICIAL

Constam deste volume .193.. ( cento e noventa e tres.......
.....................) folhas numeradas de .1.. (hum.......
............) a .1.9.8. . ( cento e.noventa e.tres..................)
no carimbo aposto no verso, e rubricadas por Atila Sinke Guj_
marães ou Vilson Ludwig, contendo reuniões do MNF anotadas
diretamente da fita magnética. Não tendo sido revistas pelo
Senhor Doutor Plinio Corrêa de Oliveira nem pela Comissão do
MNF, não constituem expressão autenticada do pensamento da-
queles.

VIV3A M04

ESCLARECIMENTOS

I
1. As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução"
são empregadas neste trabalho no sentido que lhes dá o
Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro "Revolução
e Contra-Revolução", (Catolicismo n9 100) publicado em
1959.

2. Os termos "princípio monárquico", "princípio
aristocrático" e outros análogos são empregados nestas
reuniões do MNF em seu sentido exclusivamente metafísi-
co. Não se referem a regimes político-sociais. Quanto a
estes, o pensamento do MNF é o da Igreja (Papa Leão XIII
"Au milieu des solicitudes" e "Díuturnum", e São Tomás
de Aquino, Suma Teol. la. — II q. 105, a.L.c.; e seu
comentário sobre "A Política" de Aristóteles/ livro II,
lição VII).

Mimeografado pela       (

ED1TÕKA VERA CRUZ LTDA.

K. ür. Míirtinico Prado, n9 246

01224 - São Paulo - SP

Dezembro de 1972

;í As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução" £
+ sao empregadas neste trabalho no sentido que lhes £
X dã o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro +
m "Revolução e Contra-Revo1uçao", publicado em 1959 .

advertEncia

A presente compilação, feita por um "eremita", apre
senta a matéria segundo mua ordenação estabelecida - no gur diz res
peito à sequência dos grandes temas - pelo compilador. O mesmo se
dá com a disposição da matéria no interior de cada capítulo, aten-
aida frequentemente a ordem cronológica eiu que or assuntos foram
sendo levantados nas sucessivas reuniões da Comissão.

Para efeitos da redação definitiva, a Comissãodo MNF
estabelecerá a ordenação mais adequada ã índole do assunto.

Quanto ã linguagem usada nas reuniões do MNF e res-
guardada o quanto possível pelo compilador, tem ela tôda a termino
logia usual em reuniões de conversa, e deverá também ser adaptaau
quando se tratar da confecção do texto oficial definitivo.

A Comissão do MNF.

APRESENTAÇÃO

Pelo favor epela graça de Nossa Senhora, podemos ho
je, com muito grande alegria, apresentar o trabalho que fizemos sô
bre aproximadamente a terça parte do material elaborado pela Comis
são de Estudos. A expressão "pelo favor e pela graça de Nossa Se-
nhora" não é formal. O resumo que aqui expomos - e entra nisto uma
beleza especial - deveu-se a uma íórça de vontade que não está em
nós, mas proveio tõda d'Ela. Porisso, quando dizemos nós, nessa a
presentação, temos em mente a três pessoas: Nossa Senhora, o Grupo
e aquêle que têve a honra de poder trabalhar nessa questão.

Havia-se-nos pedido, hã aproximadamente dois anos,
que preparássemos um resumo do MNF. Naquela ocasião, foi-nos dado
um programa completo para cinco anos de estudos sõbre a Opinião Pú
blica, que nos dois primeiros anos incluiria unia boa noção do MNF.

Com a instituição dos Êremos, e com o aproveitamen-
to das Reuniões de Recortes, certamente êste programa terá sofrido
alterações. Mas, acreditamos que alguma utilidade, talvez de futu-
ro, êsse resumo venha a ter.

De nossa parte, a maior alegria consiste em termos
ajudado na compilação de um material muito prejudicialà Revolução.
Outro fato que também nos alegrou,foi o de podermos ter chegado ao
fim de alguma das coisas que iniciamos. E de assim ter sido dada ã
Nossa Senhora a glória que no começo do estudo imaginávamos; "Al-
guém precisa esmiuçar e ordenar os tesouros do MNF para poder ser
mais facilmente aprendido".

Sabemos que o estudo devera sofrer alterações para
torná-lo mais didático. Sabemos que a ordenação dada talvez não se
ja adequada ao modo de entender da mentalidade marcadamente latina.
Mas imaginamos, também, que um primeiro passo está dado nêsse sen-
tido, e que êle poderá, com a graça de Nossa Senhora, servir de ba
se para que alguns conheçam o conteúdo, a lucidez, a envergadura, a
profundidade, a subtileza e a originalidade da matéria que o MN1
contém.

O trabalho está dividido em três partes que esperam
apresentar um nexo lógico entre si.

Sob o titulo de NOÇflES FUNDAMENTAIS estão reunidos
os conceitos da contingência humana e sua sêde de completar-se no
absoluto. Também estã nessa parte a noção do que venha a ser a pro
cura do absoluto. Trata-se ali, por fim, da influência das tendên-
cias junto ao homem. O estudo das tendências no homem estã muitís-
simo mais desenvolvido em certas pastas que não pertencem a esta se
rie. Mas como também o MNF trata delas, não quisemos deixar de co-
locá-las para que se pudesse ter um quadro completo.

Posta a idéia da carência humana e de seu impulso a
procura da plenitude que a saciará, a alma vai buscar êsse absolu-
to por um PROCESSO DO CONHECIMENTO e vai repudiã-lo ou aceitã-lo
por um PROCESSO DO ODIO E DO AMOR. São essas a segunda e a tercei-
ra partes.

Na Introdução, procuramos dar uma idéia geral do que
é o MNF.

*

O objetivo principal dessa compilação é a descrição
do Processo Humano. E mostrar também que pela ordem natural das coi_
sas a desigualdade e a alienação decorrem da ordem do ser. Esta de
corrência não estã inteiramente explicitada em nenhuma parte do tra
balho, mas estã subjacente em todo ele.

Não se trata aqui, senão de passagem, do papel da
graça, dos Anjos e demônios, e da grande luta invisível que se tra
va entre o sobrenatural e o preternatural para influir em cada pen
sarnento, deliberação ou ação do homem.

Portanto o resumo se atêm ao estudo do Processo Hu-
mano segundo o prisma da ordem natural.

Não ê tratado o problema do geração novismo, mas sÇ
mente o processo normal do homem conhecer e amar a Deus.

*

Caberia ainda dizer uma palavra sobre o método.

Apresentação


y .

A quem fôsse ler o resumo, deveríamos responder uma
primeira questão, que e a seguinte:

"Se uma Comissão muito credenciada fêz êsses estu-
dos, como outra pessoa pode ter a pretensão de "ordenar* o que es-
tá feito?"

Para quem tivesse essa dificuldade, a resposta se-
ria que "aComissão foi explicitando as várias teorias, em regime de
conversa. E a conversa, mesmo a dirigida, é bastante variada. As-
sim, muitas vêzes numa mesma conversa se explicitaram questões pa-
ralelas, ou até questões diversas. Era pois preciso que alguém pro
curasse ordenar as várias conversas".

O que tentamos fazer foi ordenar o Processo Humano
de maneira lógica. Náo tivemos, nessa primeira apresentação,a preo
cupaçãc de ordenã-lo psicologicamente, de maneira a torná-lo dida-
tico.

Moveu-nos o desejo de descrever o Processo Humano co
mo êle ê em si. Para, numa segunda etapa, procurar um modo mais a-
dequado de apresentã-lo.

Hã algumas questões que cumpre esclarecer antes de
se iniciar a leitura do trabalho.

os horizontes de um eventual leitor.

Isso deve-se ao fato de que, apesar de nos terem si
do dadas para o estudo 41 pastas, muitas vêzes a parte que está a-
notada refere-se apenas ao fim da reunião, onde era ditado o resu-
mo da temática tratada. Outras vêzes as anotações são completas.
Nêsse caso, muitas vêzes, nós só transcrevemos as partes essenci-
ais dos temas para atender àquilo que se nos pedira: um resumo.

*

Pedindo a Nossa Senhora que nos faça conhecer essa
doutrina,

Ad majorem Mariae Gloriam.

13 de dezembro de 1972

ESQUEMA GERAL DO RESUMO DO PROCESSO HUMANO

INTRODUÇÃO

PARTE I - NOÇÕES FUNDAMENTAIS

Cap.
Cap.
Cap.
Cap.


Cap.

Cap.

Cap.

Cap.


Cap.


Cap.


I - Consiaerações sôbre o processo humano

II - Estudo da contingência humana

PARTE II - O PROCESSO DO CONHECIMENTO

I - Teoria da visão-primeira

II - Problemas do consciente e do subconsciente

V - Como deve ser o conheciaiento normal do homem?

PARTE III - O PROCESSO DO ÕDIO E DO AMOR

I - O processo do amor

II 0 processo do ódio ou do vício

CONCLUSÃO

I N T R 0 Ü d Ç K 0

0 QUE É 0 MNF? (1)

Podemos considerar em relação ao MNF duas espécies
de fins: genéricos e específicos.

Pressupostos dos frns genéricos

Os fins genéricos ou remotos, são os mesmos fins do
Movimento.

Pressupostos para os fins do Movimento:

* A iminência da Revolução tomar conta do mundo.

* As Forças Secretas fazem um trabalho artificial
e golpes bem dados rompem o empreendimento.

* Rompido, o mundo não só escapa das garras do de-
mônio mas se operará o Grand-Retour.

* Além dêsses fatores, hã toda ação sobrenatural.

Fins genéricos do MTJF

* Romper a trama.

* Aproveitar o movimento e as graças do Grand-Retour
e conduzir o mundo ao Reino de Maria.

O objetivo essencial é cristalizar arrancando a mas
cara. Essa operação visa, capitalmente, não a salvação dos que se
entregaram de uiu modo completo à Revolução, mas sustar o processo
revolucionário na cabeça de suas vítimas. A razão capital desta pri
iuazia é tática, essa massa ê mais poderosa e numerosa. Os extremis
tas isolados nada conseguem.

O trabalho do MNF não é só uma cristalização do lei
tor contra a Revolução. Trata-se também de lhe mostrar que, segun-
do a lógica, as teses certas que êle adota o obrigam a ir muito

NOTA O que está escrito daqui em diante, se bem que nao tenha s£
do revisto pelos membros ds Comissão de Estudos, íoi tirado direta
mente das pastas do MNF . Excetue-se os títulos, sub-títulos e a C o
d
clusao, feitos pelo compilador.

mais além, ao Reino de Maria, do qual êle nega alguns princípios e
do qual sobretudo êle ignora o conjunto.

O MNF, portanto, impõe duas opções:

*

* Entre o status quo e o mal completo.

* Entre o status quo e o bem completo.

Fins específicos ou próximos

* O MNF deve ser a cartilha de estudos do Grupo, is
to ê, o livro base, o livro-chave para a formação de nossos mem-
bros .

* O MNF é uma operação de ação ideológica que atin-
ge o V na base (1). O princípio do V em pé é o pressuposto de nos-
sa tática. Em função disso e tomando em consideração nossas poucas
forças que não podem ser dispersadas, portanto o princípio de eco-
nomia de forças, nossa tãtica foi sempre dar golpes "à la"V em pé,
em processos preparatórios da Revolução.

Esta operação ideológica visa:

A. Expôr a seguinte problemática: A ordem ideal de-
sejada por nos ê a única ordem que um católico pode querer. Êle de
ve querê-la por seus fundamentos metafísicos e teológicos. Portan-
to um católico que leve seus princípios âs últimas consequências,
só pode ser ultramontano.

A ordem ideal desejada pelas Forças Secretas ê ex-
clusivamente a ordem gnÓstica, que ja existe em substractum em to-
das as formas atenuadas de Revolução. Logo, o católico tem que ser
contra tôdas as formas 'atenuadas de Revolução e sÕ pode ser ultra-
montano.

B. Pôr a nú o carácter conspiratório do movimento

gnõstico. Mostrar que êle tem usado a arte de construire destruir.

(«|«


NOTA 1_: A Revolução e obrigada, de tempos em tempos, pela sua di
mica interna, a dar passos maiores que as próprias pernas. Hess
ocasioes ela se apresenta especialmente frágil. E um golpe bem da-
do pode estragar no nascedouro o processo que ela visava levar a
termo. Essa instabilidade da Revolução é comparável a de um enorme
"V" que se apoiasse no chão pelo vértice. Um golpe re lativamente pe
queno no vertice faria com que caísse o edifício. Este e o princí-
pio do V“ em pe .

Mostrar qual a dinâmica dessa arte. Mostrar como na História esso
dinâmica tem sido seguida. Mostrar como a tática dos panos quentes
ê errada e só a da viseira erguida produz resultados.

C. Atingir um objetivo tático importantes Uma vez
que êsse livro ê um livro tático que visa um determinado objetivo,
o ponto central do livro deve ser definido em função dêsse objeti-
vo tático que queremos alcançar. Há algo que queremos alcançar e
que queremos mostrar.

Tenho a impressão de que êsse algo que queremos aj_
cançar deve ser calculado sobretudo em vista da “heresia branca".
Em razao do fato de que mover o pessoal da "heresia branca" é o
principal objetivo tático visado dentro do trabalho. Vou mostrar
depois como atingindo a "heresia branca", de fato, implicitamente
dá-se o melhor golpe para se atingir os outros objetivos que são a
refutação dos liturgicistas, etc., e a atração para o Grupo,dos ul
tramontanãveis que vão se formando dentro da Igreja.

A "heresia branca" omite a visão panorâmica da dou-
trina e do espírito da Igreja e essa omissão conduz ao desequilí-
brio e a todos os êrros que a Revolução deseja. A "heresia branca"
prepara a terra para a Revolução semear.

O grosso do tema deve ser concebido de maneira a ter
sempre presente um propagar aquilo que a "heresia branca" cala .

Gostaria de dizer como se foi formando o esquema do
trabalho contra o igualitarismo que estamos projetando.

A desigualdade é um princípio de ordem universal

A primeira fase do trabalho apareceu como sendo uma
coisa limitada a uma primeira tese. A tese ê: provar que deve ha-
ver a desigualdade entre os homens, provando que ela é um princí-
pio da ordem universal.

A idéia de nobreza confirma o princípio
da desigualdade

Esta tese deu origem a uma 22 tese: mostrar o que ê
a nobreza. Através disso, dar uma espécie de confirmação a mais do
princípio de que deve haver desigualdade entre os homens.

Do lado puramente intelectual a coisa seria assim:
deve haver desigualdade primeiro por tais e tais razões de caráter
genérico; segundo, porque a nobreza é uma determinada coisa x que
consiste nisto e naquilo.

Pelo simples fato do enunciado do que é a nobreza,
os senhores compreendem bem que, a sociedade humana não pode fun-
cionar , e a cultura não pode existir a não ser em função de uma de
terminada idéia de nobreza.

Essa prova complementar tinha a vantagem apologética
de ser uma prova a mais, mas tinha também a vantagem de apresentar
a desigualdade no que tem de mais frisante, de mais típico, de mais
incisivo e, por aí exorcisar no leitor, ainda mais profundamente,
o espírito igualitário. Porque a primeira tese, enunciada apenas de
modo muito genérico, não expurgaria do espírito do leitor tõda raen
talidade igualitária. Mas calcando a questão da nobreza e ainda
mais da nobreza hereditária, colocaríamos o princípio filosófico
em termos concretos tais que, ou se renunciaria ao igualitarismo,
ou não se teria nada feito.

O modo pelo qual saiu da tese do igualitarismo a te
se da nobreza, apologêticamente no trabalho, deve apresentar-se co
mo uma prova a mais. Taticamente, representa algo sem o que o tra-
balho não criará a crise que deve criar, ou pelo menos criará uma
crise muito mais fraca. O que se trata é de pôr a coisa em ter-
mos tais que ela crie uma crise, que os espíritos que vivem no meio
termo não possam ficar no meio termo. Nossa política, constantemen
te é tornar o meio termo inabitável para os espíritos coerentes e
lógicos.

Importância do estudo da ontologia

Dessa consideração sobre a nobreza saiu uma idéia: a
nobreza considerada como valor metafísico, e não como classe social

Introdução !$•
que tei. êsses ou aqueles predicados. É uma coisa que se deve colo-
car num verdadeiro tratado da nobreza a ser colocado numa exposi-
ção contra o igualitarismo.

Nessa consideração da nobreza como valor metafísico
surgiu a questão do super-excelente, etc.

Depois disso ficamos colocados em face de unia ques-
tão de nobreza que é a noção tradicional, consagrada na linguagem
comum em todos os sentidos que se dá ã palavra nobre, em todos os
graus de analogia, etc. Tomamos a palavra nobre nêsse sentido e v_i
nos que ela tem por detrás um certo conceito metafísico. Para ex-
plicitar esse conceito implícito, recorremos ao quadro da divisão
da ontologia, procurando no fundo do ser, um conceito de nobreza.

Dedicando-nos a esse trabalho, esclareceu - se ainda
melhor o que um estudo da ontologia poderia dar: o estudo da onto-
logia não só nos deve ajudar para a explicitação do que ê o senti-
do profundo da palavra nobre, mas nos deve dar ainda mais.

Na ordem hierárquica do universo (1) há duas coisas
para estudar:

A - Essa ordem ou escala - segundo as regras do Pe.
Ramière - deve obedecer ao princípio de que a diferença entre o IV
e o 29 degraus se repete de modo proporcional, geométrica ou arit-
mèticamente, entre os outros degraus. Hã, portanto, uma espécie de
critério que explica as relações, que mostra uma baronia entre as
várias desigualdades sucessivas de maneira a haver um pensamento
que ordenou essas desigualdades e constitui um critério.

B - Mas há algo de mais profundo. Se tomo todos es-
ses seres colocados em escala, as relações dos seres de uma escala
superior para com os de uma escala inferior são múltiplas. E em tô
das essas relações o princípio da desigualdade se realiza, e aí se
encontra um fundamento para provar a necessidade da desigualdade.
L isto de tal maneira que, bem estudado o caso, verifica-se que, ou
nao hã quase relações entre os seres ou essas relações são necessà
riamente relações oe desigualdade. E para compreendermos todos os
campos em que essa desigualdade se aplica, acho que se deve dizei
NOTA 1: Essa ordem hierárquica do universo esta descrita na "arvo-
re de Porfírio". Um bom dicionário filosófico dá essa noção clãssi
ca, satisfatóriamente.

que, estudadas as relações de seres superiores com inferiores no
que diz respeito à composição do ser, ã divisão do ser, e ãs cau-
sas do ser, tem-se todo o campo em que a desigualdade existe. Por
aí não só se prova a necessidade da desigualdade, mas se conscien-
tiza muito bem como a desigualdade atua, e êsse'conscientizar faz
com que se torne mais evidente a necessidade da desigualdade. Há a
qui um processo de demonstração que se repete: dar algo do ponto
de vista metafísico, explicitar isto de um modo descritivo, apli-
cando o princípio metafísico às relações humanas e ãs relações en-
tre os seres para, por uma segunda vez, provar que realmente isto
era uma coisa necessária. Mas ao fazer isso o papel da nobreza res
salta também de um modo muito especial. E os termos que queremos
provar da necessidade da desigualdade e, dentro dessa necessidade,
a necessidade de uma nobreza, e de uma nobreza não só como classe
social mas como valor de cultura, ficam perfeitamente demonstra —
dos, com uma fôrça extraordinária. O que está no fundo de tôda con
cepção moderna é a idéia da nobreza abandonada, vilipendiada ou ne
gada porque não se conscientizou. Conscientizando-se, põe de tal ma
neira evidente a ordem que hã dentro dela, que se torna irrefutá-
vel. Hã um princípio de dialética dentro disso, mas o princípio fi^
ca inteiramente válido.

Alguém poderia perguntar que relação tem isso com
nossa idéia de que o fim do estudo que estamos fazendo é a questão
do sublime. Na realidade, se nossa missão é fazer amar o sublime e
fazer com que êle seja algo que os homens aceitem e nêle empreguem
tôda a cultura e tôda a vida, essa consideração prova a necessida-
de do sublime ser posto nessa altura em primeiro lugar. Em segundo
lugar, descreve o conteúdo do sublime, isto ê, conscientiza essa
noção do sublime e, através disso, torna a noção não só verdadeira
mas viva, pelo fato de ter sido conscientizada, e a êsse título,
inexpugnável.
%

VISÃO GERAL

Portanto hã três teses, um princípio dialético e um
objetivo estratégico.

As três teses são:

plicação do princípio da necessidade da desigualdade, e de uma no-
breza hereditária.

breza, mostra qual o critério que diferencia esses graus, e em que
campos e de que maneira o dinamismo dessas desigualdades se desen-
volve. E, ainda, as relações estáticas e dinâmicas dessas desigual
dades.

Isso descrito conscientiza-se no bom senso geral que

ê evidente aquilo que o raciocínio primeiro sõbre a desigualdade
tinha provado que era legítimo e necessário. £ uma espécie de apê-
lo ao bom senso. Êsses três membros dessa tese visam o fim último,
que é justificar a implantação de uma ordem política,social (l),cul
tural e econômica dominada pelos valores sublimes, implantação es-
sa que se fará pela aceitação de que isso deve ser assim e pela
compreensão do conteúdo de como isso é. Essa compreensão do conteú
do nos é dada de modo super-eminente pelo estudo do quadro filosó-
fico, porque tudo isso vem baseado no ser.

ção de maniqueísmo e de gnose contra os outros. Porque se tudo de-
corre das regras do ser, vocês que recusam isto, de fato recusam o
ser.

Aqui está a cordilheira tôda. Mas ela é tal que aqui

já está a maquete da maquete do MNF. Porque tudo quanto se estudou
no MNF se estudou em função próxima ou remota dessa demonstração.

O que se quis na "Sociedade de Almas" (2), simbolis

mos (3) , etc. , é que próxima ou remotainente se fizesse tudo para
destruir objeções que o espírito moderno pudesse ter a qualquer des
sas idéias. Por quê a "Sociedade de Almas”? Por quê a "Lei do Amor"
(4)? Acaba-se vendo que o ponto mais importante disso foi o remo-
ver idéias erradas que pudessem levar à recusa de algumas das pre-
missas, ou de algum dos pressupostos dessa imensa cordilheira, ou
então provar alguma coisa dentro dela.

NOTA í: Sõbre ordem política e social vide nota da pág. 116.

NOTA 2: Vide p ã g. 27.

NOTA 3: Vide pãg. 91.

NOTA 4: Vide págs. 27, 121 e ss.

É possível que eu ainda retifique a questão, mas, a
meu ver, jã fica propriamente o esquema do MNF.

PRINCÍPIO DIALÉTICO

O que entra aqui de dialético? Entra um processo de
argumentação. Provar pela via metafísica que isso deve ser assim,
deduzindo das regras do ser. Mas depois, ao descrever como isso é,
despertar uma espécie de bom senso no indivíduo, por onde aquilo
que me ta fisicamente se provou, que era verdadeiro, o senso comum
vê que é evidente. Vem uma espécie de confirmação, mas muito pre-
ciosa, daquilo que "a priori" se tinha dito.

i

OBJETIVOS ESTRATÉGICOS

A. O primeiro objetivo estratégico procede da idéia
de que o conceito de nobreza - e aliás essa idéia ê muito de acor-
do com a R—CR - todo conceito de nobreza, que era implícito, mas
muito vivo, foi sendo esquecido e soterrado, mais do que propria-
mente refutado. E que todas as refutações feitas à nobreza vinham
de uma falsa idéia de nobreza que foi substituindo o conceito anti^
go implícito de nobreza. Mas a partir do momento em que êsse con-
ceito é reexplicitado, tôda a dialética feita contra êle morre pul
verizada, não porque é refutada, mas porque significa que ela não
vem ao caso.

Neste caso, se o adversário entra com outra dialéti
ca, nós dizemos: diga que ê maniqueu e pronto. Hã, portanto, uma
espécie de operação-explicitação que joga com isso.

B. Mas junto ao teólogo, isso não é apenas uma expli
citação, mas uma construção de um conjunto de princípios que êle
admite, nas que não arquitetonizou, e que lhe tapam a boca.

Em ambas as partes, hã uma parte filosófica que o
filósofo e o teólogo têm que aceitar, e uma parte de descrição que
ê a realidade, é evidente. E eu chamo de descrição mostrar como es
sas relações de desigualdade se dão na ordem da composição do ser,
das coisas do ser, em um sentido próprio e em um analógico.

A primeira é para os intelectuais; a segunda, para o
homem comum. O intelectual será pouco sensível a isso, mas o homem
comum aclamará isso. Aqui hã um objetivo estratégico junto â alma
da pessoa a quem nós nos dirigimos.

Isto forma um verdadeiro fecho provisório, de pro-
vas de nossos trabalhos que chegaram até onde deveriam ter chegado
nesta fase.

PROCESSO HUMANO

PARTE I

NOÇÕES FUNDAMENTAIS

Capítulo

I

Considerações sôbre o processo humano

Capítulo

ri

Estudo da contingência humana

Capítulo

III

-

0 que ê a procura do absoluto?

Capítulo

IV

-

A influência das tendências nos atos humanos

-oOo-

CAPÍTULO I

CONSIDERAÇÕES SOBRE 0 PROCESSO HUMANO

]. Importância fundamental do estÜdd do processo humano

O estudo do processo humano traça, com muita preci-
são, o itinerário lógico das várias partes do MNF.

E a partir do processo humano que compreendemos bem
como
é que se estabelecem os movimentos da SOCIEDADE DE ALMAS. Uma
vez que fique visto que existe uma sociedade de almas, com o pro-
cesso humano compreende-se no que consiste essa sociedade de almas,
porque a sociedade de almas em essência, não é senão um conjunto de
almas que estão seguindo seu próprio processo. Portanto, o proces-
so humano é o próprio estudo da essência e do funcionamento da so-
ciedade de almas.

A grande lei da sociedade de almas, que ê a LEI DO
AMOR, pelo processo humano se esclarece extraordinariamente. No es
tudo do processo humano será visto o que é o amor, por quê o pro-
cesso humano ê o próprio amor e também é o próprio egoísmo. De ma-
neira que, vistas dêsse lado, todas as regras da lei do amor to-
mam uma profundidade, uma coesão, uma segurança de jógo, uma Limpi
dez, uma agilidade, enormes. O caminhar do amor não é senão o cami.
nhar do processo humano no sentido verdadeiro ou no sentido falso.

A ESTÉTICA DO UNIVERSO E A ÉTICA (1) nos dão o ideal
no qual devemos nos transformar.

O estudo do SIMBOLISMO ê um dos meios - sem dúvida o
mais possante - pelo qual essa transformação se dã.

Todas as leis da estética do universo, nós devemos

NOTA 1: Ver também: "A Estética do Universo e a Consagração à Nos-
Tã Senhora"e "Espírito Revolucionário e Contra-Revolucionário", de
Plínio Corrêa de Oliveira.

antes comprová-las na sociedade de almas para depois comprova - las
nos outros domínios do universo.

Então, do alto dessas leis da estética do universo,
vistas na sociedade de almas, saberemos muito melhor o que fazer
com as leis de caráter temporal, de organização da sociedade, for-
mas de governos, regimes, economia, etc. Tudo na sociedade de almas
passará a se modelar muito de cima e muito do alto.

A vida eclesiástica, a vida espiritual dos povos, o
verdadeiro papel da Igreja, da vida espiritual, tudo isso ã vista
da sociedade de almas toma um relevo inteiramente novo.

Surgem umas idéias do amor de Deus, tão novas e tão
fáceis que mais ê impossível.

Chamo a atenção para um ponto. Por um método que não
pede muita erudição e tremendamente sintético, os vários domínios
do saber se encaixam numa altura inédita.

Interesse do estudo, visto em duas refraçôes

E importante notar que, metodologicamente, de fato o
processo humano compõe-se de duas refrações.

Para o interesse da Igreja em todos os tempos e luga
res, é interessante pôr em evidência o processo humano porque mil
matérias de que a Igreja trata tornam-se muito mais claras e evi-
dentes. De maneira que ainda que não houvesse Revolução, valeria
muito a pena fazer o estudo do processo humano.

Mas, mais especificamente, fomos suscitados para com
bater a Revolução. E a Revolução não ê senão o processo humano en-
quanto vivido, não por um indivíduo, mas por uma área da civiliza-
ção, por uma sociedade. Como o processo humano ê alguma coisa que
os homens fazem em sociedade, as sociedades tem o seu processo hu-
mano, que ê uma Via Láctea, harmônica e correlacionada, de proces-
sos humanos. A Revolução se define no que ela tem de mais profundo
como o processo humano falseado da Civilização Ocidental Cristã.

Todo processo orgânico tem como ponto de partida a
constituição Intima do ser, e determinadas fõrças internas no ser,
que podem ser desencadeadas ora para a'construção, ora para a des-
truição. O que caracteriza o processo orgânico ê o estar voltado pa
ra a constituição Intima do ser e desencadear certas fõrças que jo
gam dentro do ser e são estimuladas por uma ação de fora. O que do
mina a idéia, aqui, é uma espécie de direito natural do processo,
que faz com que êle seja a propulsão das fõrças da natureza.

De maneira que a arte.de governar o universo é a ar
te de desencadear determinadas fõrças, que depois, por si mesmas
vão se multiplicando, se jogando umas sõbre as outras.

Isso pressupõe que a natureza é construída de tal ma
neira que ela se move por processos e que a junção que os vários e
lementos do cosmos tem entre si são junções em cadeia. Uma junção
nasce da outra, de outra, etc., de maneira que uma des junção arras
ta outra, outra, etc.

Isso desde a ordem moral até a ordem física mais ele
mentar. Como o cosmos é o encadeamento de coisas harmônicas, a der
rubada de uma acarreta a alteração de outra. Derrubando-se uma co-
luna sõbre a outra, as outras colunas caem tôdas, são tõdas corre-
latas .

Assim se pode dar em um processo de construção, co-
mo também em um processo de destruição (1).

Processo é o encadeamento de etapas, em um ser anima
do de energia própria, por onde o efeito corrobora e desenvolve a
causa, de tal maneira que um determinado fato chegue àplenitude de
si mesmo, ã medida que se vai realizando. Êle se alimenta de seus
próprios efeitos para atingir a sua plenitude.

NOTA 1: Sobre a importância estratégica do estudo do processo huma
no, v^r também "Auto-Retrato Filosófico do Prof, Plínio Corrêa de
Oliveira".

O processo humano é o conjunto dos seguintes elemen
tos: a carência do homem, a apetência para a satisfação da carên-
cia, a procura do absoluto para satisfazer essa carência, a união
com o absoluto e a transformação no absoluto.

Êste processo ê o ponto central da história de um ho
mem. Na medida em que isso possa ser um fenômeno social, aí temos
o ponto central da história de um povo. E, em escala mais alta po-
demos ter a História da Humanidade.

Êste processo pode ser visto em seu aspecto bom - a
marcha do homem para Deus - e em seu aspecto mau - a fuga do homem
de Deus, ligando-se a falsos absolutos.

Ha os processos de caráter psicológico que envolvem
o estado dos povos também; os processos biológicos; e no terreno
das coisas inanimadas algo que não é propriamente processo, mas que
chamaríamos processo, que é um movimento para a manutenção da or-
dem dentro de certos conjuntos como, por exemplo, o movimento das
águas, dos ares para manter a Terra na posição em que está, isto
ê, a manutenção dos grandes equilíbrios físicos que tem algo de
processivo.

O elemento integrante à noção de processo é algo que
tem um começo, um desenvolvimento e um fim. Portanto, o processo
por excelência seria algo que começa e cuja tensão para o fim vai
ficando cada vez mais forte à medida que vai chegando ao fim. E o
têrmo em que o processo se realiza não ê a morte, mas é a obtenção
do fim próprio e a fixação no fim, de maneira que o apogeu do pro-
cesso ê algo de definitivo. Êle se fixa no apogeu de si mesmo.

Êsse ê o processo por excelência. Creio que no Parai
so a vida seria assim. As energias humanas se desenvolvendo cada
vez mais até a plenitude do homem, e quando o homem chegasse ã ple
nitude de sua perfeição física, moral e de união com Deus, haveria
uma apoteose que o levaria para o Céu. É como uma flexa que se ati
ra e que se fixa na meta. O fixar na meta não é a morte daquele prq
cesso, mas o apogeu do processo. 0 processo perfeito não comporta
o elemento mortal.

Na História existem imagens dêsse processo. De al-
gum modo a santificação é isso. A santificação da Humanidade de dos
so Senhor Jesus Cristo chegou ao apogeu no momento em que file pro-
nunciou o "consummatum est".

É algo que começa e que, harmoniosamente, sem defec
ção nenhuma, chega a um fim que não ê a norte mas a realização glo
riosa de sua própria perfeição.

Existe um outro processo, ligado às coisas que se
corrompem e morrem. Tudo tem um começo, um meio e uma destruição. £
o processo imperfeito como existe na Terra.

0 processo humano poderia ser visto de dois modos di
ferentes. Um é o processo da pessoa que sempre foi fiel e que nun-
ca teve defecções. O arquétipo dêsse processo é o da Humanidade de
Jesus Cristo, de quem o Evangelho diz que crescia em graça e santi
d ade.

De outro lado, existe o processo em que se introdu-
ziu o mal também, e que consiste em uma espécie de luta de recupe-
ração contra um elemento hostil que deve ser expulso do processo,
para que êle continue.

Hã um processo em luta, que é diferente do processo
em simples ascensão, como hã diferença entre um homem que escala
os Alpes,de outro que o escala, mas com gato as costas e, à medida
que vai subindo, o gato vai crescendo. O mal tem também seu prócer
so, que deverá ser estudado (1).

NOTA 1: Ver também "Considerações em tôrno de R-CR - II" - Plínio
Corrêa de Oliveira.

As leis inerentes a qualquer processo não passam de
mil formulações de uma só lei; hã um movimento em que cada etapa
corrobora o que foi feito nas anteriores, completa e alicerça o
que foi feito anteriormente e dá um nôvo ímpeto para uma etapa su-
perior.

0 processo da virtude é êsse e o processo do pinto
que sai do ôvo também é êsse.

Descendo ã mais profunda psicologia do homem, nota-
mos que hã nas apetências humanas uma espécie de correspondência em
relação à ordem natural criada por Deus. Os predicados de todas as
criaturas são susceptíveis de graus: há graus na alvura, hã graus
na maciez, de rigidez, de escuridão, de sabor, etc. Na natureza tu
do tem predicados sujeitos a determinados graus.

Concomitantemente dá-se o mesmo fenômeno em sentido
oposto. O modo de apetecer do homem é também gradativo. Podemos,
por exemplo, olhar uma luz e depois, gradualmente, ir-nos habituan
do com essa luz. Inicialmente tivemos um choque e depois nos habi-
tuamos. Podemos nos habituar a algo de macio. Depois de certo tem-
po, no entanto, ficaríamos satisfeitos se nos oferecessem algo ain
da mais macio. Porque não só o macio tem graus, mas porque vamos
progredindo, por graus, na apetência do macio. No mais alto grau do
macio, nossa apetência dele atinge também seu grau máximo.

A medida que vamos passando de grau, vamos apetecen
do o outro grau. Por êsse processo passamos da ascese de uma cama
de tãbua para o cúmulo do macio, por vários graus sucessivos, que
são duas ordens de graus: o grau do macio que está nas coisas, e
um grau segundo as nossas apetências que vão cada vez mais desejan
do o macio.

Trata-se de uma gradatividade dos predicados dos di
versos elementos e uma capacidade de caminhar gradualmente para a-
tingir o seu extremo.

NOTA £: Vide "Considerações em torno de R-CR - II" - PCO.

São Tomás diz que um pecado prepara necessariamente
outro pecado semelhante e mais grave e um ato de virtude prepara um
outro ato de virtude.                  •

Para se desviar de uma rota para outra ê necessária
fazer uma violência sêbre essa rota, como para fazer parar algo su
jeito â le I da gravidade que estã sendo aplicada numa certa dire
ção. Isso se dã de acordo com aquele princípio escolástico que va-
le para os seres e para os astros: "Símile símili gaudet” - ao se-
melhante agrada o semelhante.

Ao dinamismo do pecado, como que agrada um outro pe-
cado na mesma linha e mais grave, assim também, um ato de virtude,
ainda que pequeno, como que prepara o espírito para outro ato de
virtude na mesma direção e mais generoso.

CAPÍTULO II

ESTUDO DA CONTINGÊNCIA HUMANA

O que no homem faz com que êle conheça e ame a Deus?

Qual o mecanismo reais recôndito, na ordem do ser,qut
o faz tender para o absoluto?

Qual a beleza particular disso? E no conjunto da
Criação?

Quando o ser tem a primeira noção de seu própria
ser, êle no mesmo olhar vê seu ser e a contingência de seu ser, poi;
tanto ele se percebe contingente. Isso pela mesma razão pela qual
quando eu olho um homem, eu, num mesmo olhar, olho o homem e olho
a forma do homem. Ao mesmo tempo que eu vejo que êle ê, vejo que ê
le
ê limitado. Portanto, essa consideração da contingência, que es
tã embricada na noção do meu próprio ser, leva o homem, pela per-
cepção de sua contingência, a voltar-se para um elemento absoluto.

O homem tem uma matriz dentro do espírito que contêm
os elementos para a formação da idéia do ser absoluto. Se êle não
tivesse essa matriz, êle não poderia compreender a noção de ser con
tingente. E, portanto, o dormir dentro dêle dessa, como que noçáo
de ser absoluto, é anterior â própria noção de ser contingente que
êle forma.

A noção de que no ser absoluto não hã distinção
entre essência e acidentes

Colateralmente percebemos que, basta que o homem te
nha algo de acidental, quer dizer, algo que na sua própria esfeta
não tenha uma plenitude de ser, para êle notar dentro de st mesmo
uma gradação de ser, uma maior plenitude de sua essência em rela-
ção aos seus acidentes, e portanto uma debilidade de ser.

Através disso êle compreende que quem possuisse o
ser absoluto, possuiria em sua essência seus próprios acidentes e a
êste titulo seria o que nõs chamamos o Ser Divino.

Isso que se dá na relação essência-acidentes, da-se
em todas as outras gamas de relações.

Cada ser espiritual tem uma necessidade próxima, i-
mediata, de se conhecer e de se amar a si próprio, porque ele é in
teligente e capaz de vontade. Isso faz parte da totalidade do ser.
A possibilidade de conhecer e de amar ê a própria vida do ser espi
ritual e essa faculdade de conhecer e de amar ê o por onde o ser é
espiritual. É uma coisa tão inerente ao ser dêle que nós podería-
mos dizer que êle não poderia existir sem essa faculdade. É essa
potência de conhecer e amar que dá origem ã inteligência e ã vonta
de.

O ser enquanto relativo, enquanto contingente, não
ê conhecido plenamente a não ser na relação com os outros seres e
na relação com Deus, sobretudo, que o Ser dos seres.

Se o homem se recusa a fazer essa relação, esse co-
nhecimento, êle se põe numa situação errada em relação a tudo.O mo
vimento que sai dêle, como que reflue para êle de um modo errado,
produzindo nêle uma dor, uma sensação de completa infelicidade, da
qual humanamente falando a única imagem adequada ê o fracasso. £ o
ser que quando sente que fracassou em tudo, sem remissão, que fra-
cassou mesmo, êle tem uma espécie de descontentamento omnímodo que
é uma imagem atual terrena do que ê o horror extra-terreno.

Vemos aí a ligação entre a ordem ontológica - a reta
ordenação do ser independente de seu fim - e a ordem moral - a or-
denação do ser com vistas a seu fim. Isto é, para o homem ter suas
potências ordenadas, ontolõgicamente, êle precisa estar voltado pa
ra seu fim supremo, caso contrário a alma cai em desordem.

Alguém objetará: segundo essa argumentação o funda-
mento da moral é o egoísmo, e isso não pode ser.

O fundamento da moral sôbre o conhecimento é exata-
mente de que o exclusivo airor de si não ê nada, c que o seu próprio
ser não é nada, e que, portanto, tem que tender para Deus. Mas pai_
te de si.

A partir de mim mesmo vou procurando em tõdas as
criaturas algo que satisfaça a minha carência e eu como que me a -
bro para tõdas, como um leque. Mas, no contato com tõdas, vou per-
cebendo que tõdas se enfeixam num ente supremo que é Deus, e tudo
vai se fechando para outro ponto.

Hã, portanto, uma espécie de abertura e de fechanien
to, que é como que o gráfico das relações do homem com Deus.

A multiplicidade de minhas apetências éexpressão de
uma carência fundamental que hã em mim como criatura e que procura
uma porção de satisfações. Depois de ter procurado tõdas as satis-
fações, vou unindo tudo isso numa satisfação suprema que é destina
da ã minha carência fundamental. Isso teria mais ou menos a forma
de um losango.

- Hã perfeições limitadas.

- O limite é coisa que repugna o ser.

- Logo, para que essas perfeições limitadas exis-
tam,
ê preciso que exista aliunde um ser no qual essa perfeição é
ilimitada e infinita. A natureza das relações que se estabelecem
assim entre a perfeição limitada e o Ser Divino explica também to-
das as relações entre criatura e Criador habitualmente conhecidas.
Porque o ser limitado, a si mesmo não se sustenta. Pela mesma razão
pela qual é evidente que um ser contingente pede um ser absoluto,
é também evidente que a perfeição absoluta é a causa c o fim da pc£
feição limitada.

Ha duas grandes transformações pe^Las quais o homem
passa.

A primeira, que não ê sequer uma transformação, ê o
nascer dele, o fato de que êle não era, e passa a ser. Êste fato de
que êle não era e agora é, e que hã todo um passado atrãs dêle, que
foi antes dêle, que êle pode conhecer, mas do qual êle resulta eem
cuja composição êle não tem nenhuma participação, é evidentemente
algo que lhe dã uma sensação de contingência e limitação do seu pró
prio ser.

Saber, alêm disso, que o movimento pelo qual êle nas
ceu e um movimento que se repete igual em mil outros e que é um mo
vimento que arrasta todo o universo, no qual contínuamente as coi-
sas estão nascendo, o saber isso mostra uma unidade do nascer que
ê um fator que não sõ indica a contingência dêle, mas indica uma
espécie de unidade de ação fora de todos os seres que êle conhece,
e que de algum modo prepara seu espírito para a concepção do Cria-
dor, daquele que ê o movimento primeiro.

Mas, mais profundamente do que o pensamento sõbre o
nascer, atua a idéia da morte. A morte c por excelência a transfor
mação. A sensação de que o homem tem fim, dã-lhe uma idéia de uma
imensa transformação que êle não consegue evitar e que nêle não tem
sua sêde.

O homem percebe que tem origem e fim, mas percebe
que o próprio do ser, seria de não ter origem nem fim. Portanto, em
virtude do princípio de contradição e do princípio axiolõgico (1) ,
existe em algum lugar um ser que não tem origem e não tem fim eque
necessariamente criou os seres que tem origem e fim. É em virtude
dêsse principio, mas cuja vivacidade e demonstração provém da con-
sideração atenta dêsses aspectos do nascimento e da morte, que oho
nem ê conduzido ao princípio de um ser absoluto.

NOTA 1.: Princípio Axiologico: Em cada ser verifica-se uma ordena-
ção profunda, quanto a própria essencia e existência, o que impele
todo ente a atingir fundamentalmente o seu fim.

Aplicação ã cultura

Para efeito cultural, eu acho interessante dizer que
Deus não deu só ao homem um começo e um fim, mas em todas as wdMn
ças da vida, tudo está sempre começando e acabando. Uma manhã que
começa, a flor do campo que fenece, essas nossas reuniões que aca-
bam. Mil processos que são processos "ã la" losango - a menos que
termine numa explosão, que é o anormal do processo - vão se alar-
gando, atingem uma certa estabilidade e caminham para seu fim. Tu -
do é um constante nascer, mudar-se e morrer, e o movimento centro
disso é a própria morte. Se tenho um automóvel passando nêste mo-
mento entre a sede da Martim e o Coração de Maria, hã, nêste momen
to, uma espécie de realidade de conjunto daquele automóvel e daque
la rua, que morrera no momento em que o automóvel sai. A beleza de
uma sombra de árvore no chão de ura jardim, são mil imagens do comê
ço ao fim que tornam viva e cultural no homem a idéia da precarie-
dade de tudo.

A estabilidade no homem e, enquanto

tal, apetecível.


e_ a núncio da eternidade

Junto a essa idéia da precariedade de tudo, nos vamos
introduzir algo que nem sempre os pregadores ressaltam: tôdas es-
sas coisas marcham para uma certa estabilidade. Todo processo, co-
mo a vida humana, comporta um apogeu provisório e estável, que é
verdadeiramente uma certa razão de ser daquilo que existe na viua;
A árvore tem como razão de ser uma certa motividade em que ela pi o
duz frutos em abundância, a tal pcnto que o homem pode ser compara
do a uma árvore imensa, na qual todas as aves do céu vem pousar e
as obras do homem fecundam para o Reino de Deus, segundo a lingua-
gem do Evangelho. Essas plenitudes existem na vida do homem e é ncJ
mal que ele as queira realizar. Nau porque elas sejam um fim em si,
mas porque são algo que tem razao de um fim atual, como pequena ima-
gem da eternidade. O homem toma o gosto do estável, toma o yõsto
do definitivo, para aspirar o estável e o definitivo eternos.

Nós dizemos que a vida seria ura "non sense" se nao
houvesse eternidade, mas dizemos que e normal que o homem apeteça
essa plenitude enquanto tal, na medida em que a sua natureza pede,
e também sua perfeição, como uma espécie de primeira figura para a
perfeição eterna.

No processo que compõe toda a vida, existe o ponto
sito do losango, dentro do qual cabe uma esfera, que ê a época da
estabilidade, circunscrita e definitiva, após a qual vem a decadên
□ia.

Noção profunda de sensualismo

O sensualismo não e tomar um gole de vinho e dizer:
'é gostoso", mas é fechar o processo em si; exemplo: se eu pudesse
fixar minha vida agora, nesta roda de amigos, tomando vinho e de-
gustando isto, eu não quereria mais nada. Aí hã uma ausência de me
tafísica, hã um virar do prazer em si mesmo que constitui algo que
ê um pecado, que ê o senso irreligioso das coisas. O perigo de to-
dos os prazeres não é de serem muito intensos, mas é de serem sem
referência ã metafísica. A intensidade do prazer é perigosa quando
desvia da metafísica; quando é uma intensidade que vai na linha da
metafísica, só encaminha para Deus.

O indivíduo percebe que êle tem noçoes menores do

que o ser na sua plenitude envolve.

Decorre daí que êle fica com uma espécie de fundo
de mistério na cabeça. £sse fundo de mistério é o tal senso do mis
tério que todo homem carrega consigo. £ um mistério que não deve
ser visto como algo de contraditório com a natureza do ser contin-
gente, mas como algo que tem um mundo de harmonias para cujo conhe
cimento o ser contingente tem uma apetência amorosa. O homem então
percebe a razão de ser de uma Revelação. A Revelação não teria ra-
zão de ser se a mente humana fôsse capaz de esgotar tudo quanto e-
xiste na noção do ser. Mas como ela não e capaz de esgotar, a Reve
lação ê algo que a enriquece tão harmoniosamente que o homem a pro
cura com avidez, e daí vem o espírito disposto para a Fê.

Pelo contrário existe a revolta contra a Fé, pelo ho
meio que não aceita a contingência de seu ser e de seu saber.

Isso explica bem a nossa diferença com os protestan

tes.

Também explica bem a decadência da Europa nos tempos
modernos, especialmente a decadência da Itália. Fazia parte da ILÚ
lia no tempo de Dante, de Giotto, de Fra Angélico, uma beleza onde
havia sempre a harmonia de um mistério insinuado e subjacente. As
vêzes um mistério "fassur" conto em Venéza, as vêzes um mistério be
líssimo como em Fra Angélico, quer dizer, realidades que não for^m
ditas, que não foram descritas e que se insinuam por detrás (1).

A Itália do século XVI rompeu com o mistério. Temes
como exemplo a Igreja de S. Pedro, que é uma Igreja sem mistério.
Uma cultura sem mistério é uma cultura que ficou "poca".

NOTA 1: Vide WA Renascença - II” - PCO.

CAPÍTULO III

0 QUE U PROCURA DO ABSOLUTO? (1)

Eu quereria dizer de que maneira o vocábulo "absolu
to" apareceu entre nós.

Estudando os liturgiclstas, veio-me ã idéia aseguin

te construção. Uma pessoa pode fazer as seguintes operações: ela o
lha para um sofá e gosta do sofá verde; numa segunda operação, elh
olha vários sofás e nota que prefere os sofás verdes; numa tercej_
ra operação ela diz: "tudo quanto é sofá verde eu gosto"; depois e
la dirá que gosta de tudo quanto é objeto verde. Chegará, enfim,ao
alto da montanha dizendo o seguinte: "eu gosto do verde". Gostando
do verde, ela gosta já de uma coisa abstrata que não se confunde
com nenhuma das realidades concretas em tõrno das quais ela se mo-
ve. Coisa abstrata essa,que acaba sendo o verde em si. Agora, o que
é o verde em si? C um reflexo, uma analogia, ou seja lã o que fõr,
de uma pessoa.

Os antigos pagãos faziam do outono,da primavera, do
verão, da aurora, da glória, da fecundidade, da agricultura, pes-
soas. Eles não estavam errados na idéia de que em última análise
isto tem que se personalizar. Cies estavam errados em admitir que
se personalizavam em muitos deuses. Nós, católicos, sabemos que
tudo isso se personaliza num sõ Deus. Dentro dessa concepção, pode
mos dizer que o absoluto é uma pessoa, Deus Nosso Senhor, que pro-
curamos dentro de tõdas as coisas.

Eu passo daí para uma figura que eu chamaria alca —

chõfra hipotética. É uma figura destinada a mostrar como, através
de vários contingentes e relativos, a pessoa procura o absoluto.Eu
Imagino uma alcachofra com tôda a estrutura que têm as alcachofras
que conhecemos, mas com uma peculiaridade que as alcachofras que
conhecemos não possuem. Vamos imaginar que as pétalas da alcachõ —
fra, as mais altas, tivessem um sabor mais leve que o fundo, e que

NOTA 1: Ver também "Problemas espirituais dos apoatolos da Contra-
Revolução - II" - Paulo Corrêa de Brito Filho.

â medida que fôssemos aprofundando, o gosto das pétalas fôsse se
tornando mais intenso.

Eu diria que a pessoa, comendo pétala por pétala, le
vada pelo gôsto, pela apetência de degustar o fundo da alcachofra,
iria comendo pétala por pétala, até comer o fundo. Então diria que
iria através dos contingentes ate a plenitude, que é Deus. De onde
apareceriam os seguintes degraus: o amor da coisa concreta, o amor
da coisa enquanto reflexo de outra, o amor de uma coisa abstrata e
a consideração de uma coisa puramente intelectiva. Por aí, sucessjl
vamente, chegaríamos até Deus.

Precisão de linguagem

A Comissão chegou à seguinte conclusão:a palavra ab
soluto para nosso uso pode passar, mas desde que nós a reservemos
para o fundo da alcachofra. As vãrias pétalas sucessivas da alca-
chofra seriam participações sucessivamente mais densas, ou maiores,
do absoluto.

Então poderíamos; considerar vários pecados contra o
absoluto. Um deles é o de ficar nos vários estágios desse proces-
so. Dizíamos que o geração nova tem muitas preguiças, de que fala-
mos. O geração velha faz abstração, êle entra neste processo, ele
come algumas pétalas da alcachofra, mas êle não chega até o fundo
da alcachofra, que é a personalização.

Poderíamos ver o pecado contra o absoluto de outra
forma. A maneira seria a seguinte: é o princípio da totalidade a-
plicado aqui ao problema. Se eu amo uma determinada coisa, por e-
xemplo, uma certa virtude, não posso amar apenas uma modalidade des
sa virtude, mas o amor sério a essa modalidade obriga-me a amar es
sa virtude tôda. O amor serio a uma virtude obriga-me a amar todas
as virtudes. Portanto, o homem não pode amar, sem um pecado, um ab
soluto só. file pode amar preponderantemente o absoluto de sua luz
primordial. Mas êle tem que amar de todo coração todos os absolu-
tos, porque o absoluto é um só.

A procura do absoluto propriamente da existência de
Deus deve ser aplicada também a cada um de nós enquanto ser inter-
no. Não conheceríamos a idéia de ser se não tivéssemos a sensação
de nosso próprio ser. Se entre tudo que conhecemos do ser e nós,
sentíssemos contradição, não pensaríamos as coisas a nosso respei-
to como são.

Em última análise, há três modos do homem pensar, ou
três reinos em que a ordem do universo pode ser considerada: em 1?
lugar, a ordem do universo enquanto considerada nos seres externos;
em 29 lugar, a ordem do universo enquanto considerada no ser inter
no e no meu ser, são ordens análogas uma se revestindo na outra.
Por sua vez, elas duas se revestem no cume que ê a ordem que há ou
Deus e tudo quanto em Deus é necessário.

De maneira que, a bem dizer, hã três ordens para se-
rem consideradas, para termos uma visão total de tudo quanto exis-
te. As várias provas da existência de Deus correspondem ãs várias
portas da alma por onde o homem pode ver o absoluto. A inteli-
gência bem ordenada deve ter tôdas as portas da alma e tõdas as
portas do coração abertas para isto.

Todo o universo material não e senão uma imagem da
alma humana. Tõdas as coisas que existem na matéria, mesmo os seus
próprios movimentos, são analogias da alma humana, que é a realida
de irais alta à qual tôdas devem servir de espelho, de melo de veri
ficação, de conhecimento de si mesma, etc. Por sua vez, as almat
humanas tôdas não são senão reflexos de Deus. De onde, como duas
quantidades parecidas entre si são parecidas com uma terceira, ch£
gamos è conclusão de que o universo material também é uma semelhan
ça de Deus. Se isto é verdade, podemos dizer que o indivíduo tem
dois modos de fazer a procura do absoluto. G primeiro, enquanto cou
sidera as coisas materiais e nelas percebe a representação de valo
rea que apenas tem seu sentido na alma humana enquanto existente
no homem. Por exemplo, quando o indivíduo fala da glória do sol
poente ou da alegria do sol nascente, ê claro que o sol, como um.i
bola de fogo, ê incapaz de glória ou de alegria. Mas êle exprime,
êle representa como ser inerte coisas que estão na alma humana. O
indivíduo, por seu lado, na glória sol, considera algo que exi

te no homem, depois quando se eleva mais alto, destaca daí a idéia
de glória em si e êle tem essa idéia de glória subsistente que ê
Deus Nosso Senhor.

Pode-se dizer que todo absoluto ê uma virtude consi
derada no primeiro grau enquanto é simbolizada pela natureza inani
mada, considerada no segundo grau enquanto é existente no homem, e
considerada no terceiro grau enquanto subsiste personificada essen
cialmente em Deus. Então concluímos que todo absoluto é, necessa-
riamente, uma virtude moral.

Na Criação notamos dois modos pelos quais essas vir
tudes morais podem ser expressas: um modo estático e um dinâmico.

No modo estático consideramos os seres em si. No mo
do dinâmico consideramos os seres enquanto relacionados uns com os
outros, e estas relações constituindo um modo especial de indicar
virtudes e de cantar a glória do homem e de cantar a glória de
Deus.

Poderíamos ir mais longe. A glória do homem como
criatura de Deus e a glória de Deus em si, são coisas que o univer
so canta por duas formas de orquestração:

lâ: pela simbolização das coisas;

2â: pela simbolização da relação entre as coisas.

Por exemplo: a virtude da fortaleza. Posso vê-la nu
ma coluna que está em pê; no emblema da família x há um dístico a-
baixo da coluna: "ela está em pé por sua própria fõrça". S uma re-
presentação esplêndida da virtude da fortaleza. Tenho aqui um ele-
mento isolado que em si já representa a fortaleza. Mas eu poderia
ter um outro ser que me representasse a fortaleza pela relação en-
tre vários outros seres. Por exemplo, uma corrente que carrega um
pêeo é uma relação que dá a idéia de fortaleza. E, conforme meu fei
tio de espírito, posso ver melhor o absoluto num ser determinado,
ou numa relação de seres. Uma classificação que viria daí não se-
ria uma classificação de absolutos, mas uma classificação de fei-
tios de espírito segundo os quais se vê o absoluto.

O homem pesquisa de fato serttpre o absoluto, mas o

absoluto que êie pesquisa não ê apenas*a santidade, a bondade, mas
pode ser também o ser. Quor dizer, o homem, por exemplo quando êlc
anta o absoluto, êie também ê o absoluto em si, e a esse título êie
se ama a si mesmo e no amor que êie tem a si mesmo, ele ama aque-
les que estão mais próximos dêle, enquanto êie é êie, e enquanto ê
le se ama a si mesmo.

Vem também o amor daqueles que têm conosco outros

títulos de proximidade, como per exemplo a semelhança. Vamos dizer,
por exemplo, um amigo que é parecido comigo, eu o amo enquanto pa-
recido comigo, reflexo do amor que tenho de mim. Ou, por exemplo,
um homem que é meu benfeitor; êie conservou o meu ser, ou êie aju-
dou a ampliar o meu ser, então eu o amo. A ama de leite, por exem-
plo, a gente estima porque ela de algum modo concorreu para o de-
senvolviiaento do nosso ser.

Assim, eu acho que os vários títulos de proximidade

se encaixam harmônicamente dentro dessa teoria do absoluto que tam
bêm estabelece a ponte entre as coisas.

O que eu acabo de dizer, acaba, portanto, dando uma

justificativa dentro da procura do absoluto, do "egoísmo** são, que
é o que as Forças Secretas gostariam muito de destruir em nossos
dias.

A primeira modalidade é o absoluto enquanto consis-

tente numa idéia abstrata ou numa coisa puraiuente intelectiva. No
modo como êsse raciocínio se encadeia, hã uma semelhança com Deus,
que tem um valor mais ou menos independente - não se confunde, pe-
lo menos - do conteúdo da idéia.

Além da idéia, teríamos uma pessoa que também pode

traduzir o absoluto. Assim, um advogado que esteve em Ars estudan-
do São João Batista Vianney, quando voltou, lhe perguntaram o que
tinha visto em Ars; êie disse que tinha visto Deus num homem. É um
hoiibcm que é o símbolo d<> absoluto.

Em terceiro lugar, o absoluto pode consistir nos mo-
vimentos, no encadeamento e sucessão dos fatos, no modo pelo qual
as coisas se movem, andam, enfim, em tõda a dinâmica um certo abso
luto pode aparecer.

O absoluto pode aparecer numa quarta modalidade que
ê a das cenas ou situações. Por exemplo, o encontro de Nossa Senho
ra com Nosso Senhor ao longo da Paixão é uma situação; e é uma si-
tuação na qual um conjunto de relações tomam instantaneamente até
uma fixidez, para constituir uma cena imortal, em que mil absolutos
aparecem.

O quinto tipo de absoluto ê formado pelas coisas ir
racionais enquanto espelham determinados ambientes.

Talvez hajam outras variantes mas, pelo menos essas
cinco se diferenciam muito entre si.

Dessas considerações passamos a ver como são trans-
missíveis êsses absolutos de uma pessoa para outra. Porque se nos-
so objetivo ê saber infundir determinados absolutos, não hã dúvida
de que se deve considerar aqui três elementos:

* Da coisa em si, na qual o absoluto se espelha.

* Da pessoa que deve ver o absoluto.

* De alguém que serve de transmissor de uma coisa,
para outro.

Foi então estabelecida uma primeira regra, por suges-
tão do Arnaldo: êsses absolutos só podem ser compreendidos e trans
mitidos em determinado nível de finura e plenitude - quando hã uma
certa afinidade do transmissor e do recipiente, pelas suas luzes
primordiais, com aquele absoluto que se deve transmitir.

Isto não contradiz a segunda regra - por mim sugeri
da - de que todos os absolutos de uma certa elevação, nas suas li-
nhas gerais são perceptíveis por todos os homens.

Fixamos depois uma terceira regra, que seria a dis-

tinção entre dois modos de transmitir o absoluto. Primeiro modo :
quando simplesmente se faz a coisa brilhar em si. Por exemplo, um
literato que transmite uma cena de um modo esplêndido, um cantor
que canta de um modo esplêndido um trecho musical. Segundo modo: o
crítico que sabe, por meio de palavras'judiciosas, mostrar dentro
de seu interlocutor todo um firmamento de expressões que estavam
meio encalhadas, por falta de definição e expressão que êle encon-
tra as palavras adequadas para fazer realçar. De maneira que o in-
divíduo olha para aquilo e diz: sim, ê isto mesmo.

8• Qs.falsos absolutos (1)

O absoluto do sensuai

O que vamos ver agora refere-se ãs falsas formas de
absoluto. 0 apetite sensual procura satisfazer a alma na sensuali-
dade como que encontrando nela um absoluto. Não é que o sensual pro
cure o absoluto, mas o papel do absoluto ê feito em sua alma pela
sensualidade. Em que sentido? O indivíduo sensual tem a vivência
de que, satisfazendo os apetites, êle como que consegue um certo
absoluto em si, por meio de uma espécie de paroxismo que ê o êxta-
se. Êsfe paroxismo, tendente a ser completo, vai procurando cada
vez mais um requinte que lhe dê, num determinado momento, a pleni-
tude da fruição. É como alguém que bebe,de repente, a taça do pra-
zer e não mais precisará dêle, possuindo-o de modo permanente. Uma
das coisas mais curiosas da história da alma humana é, exatamente,
essa procura de algo, depoi s do que o homem nunca mais precisará
procurar nada. E isso
é tão verdadeiro que Nosso Senhor, querendo
atrair as almas para a Eucaristia, fêz a promessa de que ae encon-
traria isso na Eucaristia.

Li, uma vez, um artigo sôbre Casanova, em que o au-
tor dizia que só se observava Casanova sob um aspecto: o Casanova
pulando uma escada de sêda para atingir o balcão da bem-amada que
o esperava tôda perfumada. Mas ninguém via o cansaço de Casanova,
apôs mil aventuras, insatisfeito e velho, pulando ainda escadas ese
exibindo em busca de um prazer que nunca encontrou. Qual era o pra
zer que êle queria? Queria encontrar uma mulher que depois nunca
mais lhe desse vontade de procurar coisa alguma, pois estaria em
plena posse dela e de seu prazer. Ninguém vê a "Quarta-feira de Cin

NOTA 1: Vide "Revolução e tontia Revolução", Cap. VII,3 - PCQ.

zas" do Casanova, fato êsse bem verdadeiro.

Então o sujeito vai de requinte em requinte para ver
se chega a isso, mas hã no fundo da natureza humana uma sêde tal
que ela não se satisfaz com nada. Não ê dizer que os seres exter-
nos não satisfazem, porque a coisa é outra. A alma humana seria in
satisfactível, mesmo que encontrasse satisfatórios. Ela quer de tal
maneira inebriar-se que vemos, de alguma forma, ela ser feita para
o infinito, sem o infinito ela com nada se satisfaz.

O sujeito procura o infinito no sensual, o absoluto
no êxtase, nada o satisfaz.

O absoluto do orgulhoso

Tonando o orgulhoso, hã duas espécies de orgulhosos:
o introvertido e o extrovertido. O introvertido tem carência de cer
tos absolutos que êle quer comer. Ele tem idéia de que quando co
mer aquilo, fica um ser tão alto a seu próprio juízo-que ê uma coi
sa que vale muito mais do que o juízo dos outros - que nem lhe in-
teressa a aprovação dos outros. Ele tem dentro de si a lâmpada ace
sa de uma superioridade inacessível. Mesmo que lhe cuspam, nada im
porta, êle tem a cabeça nas estréias enquanto seus pês estão no
chão. Esse tipo de orgulhoso vai atrás de literatices, de livros, de
filosofia; pode haver um orgulhoso teológico, certamente um orgu-
lhoso artista. E êle vai nêsse ponto buscando uma outra forma de in
finito: um valor tão alto que êle quase se diviniza nisto.

Hã o orgulhoso extrovertido que busca os aplausos da
multidão, mesmo que seja plagiando, copiando o que outros fizeram,
lançando mão de truques, etc. Ele procura de tal maneira desconcer
tar os outros na admiração a si, que busca ser adorado. Em ambos e
xiste um fenômeno de carência que produz um determinado êxtase. Tal
êxtase dará a sensação de que o sujeito atingiu um determinado ab-
soluto (1) .

Absolutos laicos

Cabe aqui uma forma errada também, que ê o laicismo
moral. 0 sujeito procura identificar-se com a probidade; êle é ho-
NOTA 1: Ver também: "0 Espirito Humano tem fome de Absurdo e de Fe
cado", D. Corte: - Circular aos Sócios e Militantes.

nesto. Outro procura identificar-se com a gentileza, êle ê gentil.

Esaü: a espírito prático

Qual foi propriamente o'pecado de Esaú? Ele vendeu
a primogenitura, coisa de alto valor moral e, portanto, muito mais
apiociavel ã luz dos absolutos do que um prato de lentilhas, que é
uma coisa prática. Aqui entra uma espécie de condenação dêsse espí
rito prática que ê incapaz de ver o absoluto.

Absoluto do preguiçoso

Haveria a estudar aqui , de que modo o preguiçoso pto
cura o absoluto na preguiça. O não fazer nada, não é, para o pregu£
çoso, somente uma ausência de esforço de fazer, mas ê uma espécie
de pecado de acedia, por onde êle, violando as leis da vida, tem
pouca apetência pelas coisas que deveria apetecer. O sentir-se vi-
ver simplesmente no õcio, dá-lhe um prazer que basta. Nisso êle pro
cura encontrar o absoluto. Mas ele vê uma frustração disso que é,
exatamente, uma punição.

0 absoluto do "blasê"

Eu esquecera o "blasê". Na raiz dessa atitude do in
divíduo que prevarica, e que procura os falsos absolutos, existe u
ma bipartição. Pela razão êle vê que êsses absolutos não são abso-
lutos, mas internamente êle tem uma vivência Ilusória de que êh.s
são absolutos. Essa bipartição entre a vivência e a razão faz com
que êle possa se iludir de que a razão esteja lhe apresentando coi
sas falsas, êle intui que aquilo não é assim e vai atras daquela
falsa intuição. O "blasê" é o homem que levou as vivências até on-
ae podia levar e não checou nunca ao êxtase completo, mas jã teve
o suficiente de vivências para compreender que aquele caminho ê ei-
rado, que aquilo não dã o que êle pensava que daria. Não ê sõ ver
que o êxtase não satisfaz, mas é notar que, pela própria ordem na-
tural das coisas, aquilo nao contém o que o indivíduo pensou. Por
exemplo: o caipira que vem para a cidade pensando encontrar uma ma
raviiha, depois êle vê que a cidade não ê maravilha nenhuma, mas ê
le tica “blasê" e ao mesmo tempo viciado e não consegue sair du cj.
dade.

Então o próprio do "blasê" ê ficar apegado à coisa,
já sabendo que ela não tem aquilo que supunha.

A raiz profunda da procura de falsos absolutos

Todos os falsos absolutos são assim. Isso deita raí
zes num problema estranho, mas muito profundo. É o compreender que
a raiz de todo pecado estã no fato da pessoa não querer seguir a
razão e querer seguir uma determinada série de vivências. O habi-
tuar-se a não confiar na razão e seguir as vivências. Portanto uma
debilidade da inteligência, por onde os critérios de certeza e in-
certeza, de bem e mal se afrouxam porque o sujeito recusou o meca-
nismo da inteligência. Acaba dando um sujeito vivência1.

Parece-me, aliás, que tôda a pedagogia de hoje leva
a criança a tomar a vivência como a lei suprema e duvidar muito da
razão. Então compreende-se qual o suiranum de abominação a que se
quer chegar.

Parte I

CAPÍTULO IV

A INFLUENCIA DAS TENDÊNCIAS NOS ATOS HUMANOS (1)

Vamos tomar a linha do desenvolvimento de um indiví
duo ao longo de sua vida. Depois poderemos aplicar as mesmas obset
vações para os povos. Dessa linha vamos tomar um ponto x. Bsse pon
to vamos destacar e analisã-lo em todos os elementos que o determi
nara, em tôdas as forças que influem para que aquilo se de como re-
almente se dá. Vamos tirar, digamos, uma fotografia do homem naquê
le ponto, procurando saber, naquele momento, quais são as tendên-
cias, quais são as forças que o puxam para cima ou para baixo, e
que determinam que êle do ponto x atinja o ponto x'.

Para fazer êste estudo é preciso que abstraiamos do
Livre arbítrio e indaguemos: se não existisse o livre-arbítrio, pa
ra onde o impulso levaria o indivíduo? Para onde a inércia o leva-
ria?

Hã, então, uma série de forças que nós vamos repre-

sentar graficamente por vetores. Quais são os vetores?

Fazendo força para baixo estã, naturalmente, o peca
do original, que é o primeiro vetor.

29 vetor: o demônio, também fazendo fôrça para bai-
xo.

39 vetor: a natureza segunda,que êle hereditãriamen
te recebeu de seus pais, fazendo fôrça para cima ou para baixo.

49 vetor: o ambiente no qual êle se encontra.

59 vetor: a sua história particular que, conforme o
quadro, poderá ser um vetor ascendente ou descendente. Dentro da
história particular é preciso distinguir, sub-distinguir os hãbi-

NOTA 1^: Ver Catnbém "Revolução e Con t r a-Rc vo luçao" , Cap.V,l -
NOTA Ver cambém "Revolução A e Revolução 15 - IV" - PCO.

tos e os atos que ainda não se transformaram em hábitos. Êsses há-
bitos formaram a natureza adquirida.

6*? vetor: hã ainda a graça, com todos os seus ele-
mentos, intercessão dos Santos, auxílio dos Anjofe, a graça própria
mente dita, etc., que serão forças para cima.

Essas fõrças terão uma resultante. Essa resultante
exprimiria de modo completo o impulso a que o indivíduo que esta-
mos analisando, está sujeito. Seria a direção para onde êle iria
se se entregasse à inércia.

Determinado o vetor resultante, isso nâo quer dizer
que o indivíduo agirá necessariamente na direção e na intensidade
do vetor. Agora entrará o livre arbítrio, que escolherá se concor-
da ou não com a solicitação da tendência.

Natureza decaída, ou primeira natureza, é a natureza
depois do pecado original com os defeitos e tendências más, comuns
a todos os homens.

Segunda natureza, ou natureza herdada, é aquilo que
a criança recebe de seus ancestrais. Pode ser boa ou má.

Terceira natureza ou natureza adquirida ê o conjunto
de hábitos que cada homem vai adquirindo ao longo de sua vida, por
influência do ambiente, dos atos que praticou, etc.

Na hereditariedade entra antes de tudo o fator biolõ
gico. E ê o fator da concupiscência humana. A concupiscência tem
graus, e se ela ê muito ardente nos pais, tem nos filhos um grau de
ardência espontânea maior do que se os pais fossem temperantes. A-
firmamos portanto aqui, o princípio da hereditariedade biológica
dos hábitos dos pais sõbre os hábitos dos filhos, sõbre as tendên-
cias dos filhos. A Escritura exprime isso de uma forma muito pito-
resca dizendo: "os nossos pais chuparam uvas e nõs ficamos com os
dentes ásperos".

Temos então um determinado conjunto de disposições,
de tendências que, ora dão para uma violenta intemperança quando
pais foram intemperantes, ora, pelo contrário, podem dar numa gr a i
de temperança quando os pais foram temperantes.

E pode também dar para uma verdadeira propensão pa-
ra o bem, quando os pais foram bons. Por exemplo, no instinto que
leva o homem a ser sanguinário, na ira. Os pais muito iracundos
transmitem aos filhos a iracundia. Os pais muito benignos transmi-
tem aos filhos uma natural doçura de temperamento que, ou não os
inclina nem um pouco para a iracundia, ou pode levar mesmo a ter u
ma certa aversão ã efusão de sangue, a brigas, etc. E isso a tal
ponto, que essa aversão ã briga pode as vêzes ser doentia e exces-
siva em determinados temperamentos. Aqui está, portanto, um primeL
ro grupo, um primeiro fator que é um fator de caráter hereditário.

Para se compreender bem todo alcance desse fator é
preciso lembrar que São Tomás de Aquino disse que Deus cria tõdas
as almas iguais e que as diferenças psicológicas que notamos no ho
mem, vêm dos corpos. Aí podemos perceber bem a importância do fator
corpo. Não no sentido determinista de tolher o livre-arbítrio, mas
no sentido de condicionar o exercício do livre-arbítrio.

Ao lado disso, temos o que poderíamos chamar de here
ditariedade cultural. Que <5 todo o ambiente cultural dentro do qual
vive o homem e que, entrando nêle desde a infância, e portanto mo-
delando jã as suas primeiras impressões, naturalmente funciona co-
mo uma espécie de segunda hereditariedade (1).

Pode haver determinados estados, por exemplo, os es-
tados de extrema barbárie, em que o impulso espontâneo dos defei-
tos humanos é tão grande que um homem só consegue praticar um gr an
de número de virtudes por meio de um esforço heróico da inteligên-
cia, para perceber que aquilo é virtude, e da vontade para, de fa-
to, dominar a ardência das más tendências e estabelecer o império

NOTA 1: Vide "A Liberdade da Igreja no Estado Comunista" e "Revob
çao e Cnntra-Revc1uçao" - Cap. X , de Plíuto Corrêa de Oliveira.

da virtude.

Ha um segundo estágio, em que o impulso da esponta-
neidade má já não é tão grande, e em que estamos em presença de u-
ma luta séria, de uma luta prolongada mas que pode não ser necessa
riamente heróica. Terá, talvez, algum lance heróico de vez em quan
do, mas pode não ser necessariamente uma luta heroica.

Temos um terceiro estágio, em que a luta é uma luta
seria, mas já não é uma luta de resultados tão duvidosos, incertos.
£ a luta comum de todos os homens.

Mas ainda pode haver um outro estado diferente, em
que a maior parte dos instintos está em ponto morto, não leva para
o mal. É apenas um ou outro instinto que leva para o mal.

Por fim, temos um outro estado em que um ou outro
instinto levam para o mal, mas a maior parte dos instintos já con-
duzem normalmente para o bem. De tal maneira que hã uma verdadeira
dificuldade para o homem vencer seus instintos educados, que na sua
espontaneidade já produzem frutos suaves, e praticar o mal. Por e-
xemplo, ê possível que o remotíssimo antepassado de Luis XVI,vamos
dizer o Capeto, fosse um homem que tivesse uma necessidade de uma
força de vontade muito grande para não matar as pessoas.

Luis XVI, seu remoto descendente, está no extremo o
pôsto. A sua espontaneidade, deste ponto de vista, foi tão educa-
da, reeducada, super-educada, que ele acabou pecando, faltando com
os seus deveres de Rei para não matar os culpados da sangueira re-
volucionária. Quer dizer, o próprio instinto jã leva à uma suavida
de que quando não ê exagerada, está dentro da linha da virtude.

Esta imensa gama de instintos nos leva ã afirmação
de uma lei que é a seguinte: os instintos maus e os instintos bons
são susceptíveis de uma compressibilidade muito grande, mas nunca
de uma extinção.

Por mais pérfido e decadente que seja um homem ou um
povo, ha nêle uma certa tendência para o bem. E também em sentido
contrário, por mais que um povo ou um homem se elevem na linha da
virtude, hã neles sempre algumas tendências para o mal.

6 . fl na t u reza de ca Teia

Ao estudar a natureza de Adão, São Tomás diz que es
ta natureza constava de três elementos:

Com o pecado, Adão perdeu a justiça original e per-
deu uma boa parte da inclinação para.a virtude. Os princípios cons
titutivos conservaram-se intactos.

Então tôda a variação da natureza decaída: progres-
sos, regressos, desenvolvimentos, caminhos para a barbárie, etc.,se
dão dentro do campo da inclinação para a virtude. Os princípios
constitutivos são inalteráveis. A justiça original, nós não pode-
mos mais atingir. Tudo então está em estudar a inclinação para a
virtude. Onde esta inclinação fôr maior, a natureza decaída estará
mais aperfeiçoada, onde fôr pequena ela estará em decadência.

Surge então o problema de saber o que ê a inclinação
para a virtude. E ê preciso encarar dois problemas muito confusos
que a seu tempo precisamos deslindar bem.

Ha duas coisas que parecem ser um enriquecimento da
natureza nêsse sentido. De um lado o que nõs poderíamos chamar os
dotes naturais e de outro o que chamaríamos a inclinação para a vir
tude propriamente dita.

Oote natural ê por exemplo o caso de Churchill. Êle
ê uma pessoa que, como inclinação para a virtude sobrenatural tem
muito pouco, mas como capacidades naturais de inteligência, de cul
tura, tem muito.

Em que sentido as capacidades de Churchill são vir-
tudes? No sentido de que elas formam uma boa ordenação da pessoa
dêle. Em que sentido não são? Enquanto essa ordenação não tem por
objetivo o absoluto, mas a pessoa dele.

5B.

Alguém poderia procurar destruir a nossa teoria dos
vetores mostrando que hã sempre uma proporcionalidade entre a gra-
ça e o vetor dominante. Porque a tentação nunca seria maior do que
a graça. E, portanto, a teoria dos vetores não tem a fôrça que nós
dizemos ter. Porque, se ê verdade que o empuxe das fõrças materia-
is é muito grande, é verdade também que o empuxe da graça ê muito
grande. Assim, há sempre um equilíbrio, e nõs estamos exagerando a
importância da teoria dos vetores.

Isto é falso. É falso porque o homem tem as graças
na proporção em que êle reza. Se êle não reza para ter as graças,
as graças não vêm na proporção da tendência má. Não lhe vem porque
êle não rezou. Isso não é absoluto, mas ao menos as graças podem
não vir. De maneira que muitas vêzes o homem cai por falta de gra-
ças, não porque a graça lhe tenha sido negada, mas porque êle não
rezou. E então todo o problema da oração,e do livre-arbítrio, por-
que a oração é um ato pôsto pelo livre-arbítrio, fica, colocado a-
qui.

O que na teoria dos vetores seria preciso conside-
rar é que o homem muitas vêzes recebe graças devido à oração de ter
ceiros. Isso precisaria ser estudado. O conjunto das orações que
cercam a vida de um homem. E nessas orações entram também méritos
que êle adquiriu no passado e que Deus toma em consideração apesar
de êle não mais querer. Isso poderia ser contado como um vetor ã
parte .

De maneira que isso não desmerece o nosso quadro dos
vetores, mas, pelo contrário, o enriquece mais.

Outro fator que pesa nas decisões do indivíduo e de
veria atuar como um vetor ê a carga de Revolução com que cada ho-
mem nasce.

PROCESSO HUMANO

PARTE 11

O PROCESSO DO CONHECIMENTO (1)

Capítulo

I

Teoria da visão-primeira

Capítulo

II -

Problemas do consciente e do subconsciente

Capítulo

III -

O que e na alma a "câmara obscura"?

Capítulo

IV -

0 processo do pensamento, seus mecanismos,
seus desvios, sua correção.

  • 1.    Contribuições da animalidade para a formação do
    pensamento.

  • 2.    A primeira e segunda cabeças

  • 3.    O papel da "conversio ad phantasmata"

  • 4.    O conhecimento abstrativo e o simbólico

  • 5-    Importância do "problema da vida'

Capítulo

V

Como deve ser o conhecimento normal do homem?

  • 1.    Bom senso e senso católico

  • 2.    Teoria da metafísica viva

-oQo-

NOTA 1; Se bem que na realidade prática, os atos da inteligência e
da vontade vêm entrelaçados, no caso do processo do conhecimento e
do processo do Ódio e do amor, pareceu-nos que, por razoes de cla-
reza, era conveniente a separação.

CAPÍTULO I

TEORIA DA V ISSO-PRIMEI RA

No espírito humano as regras da lógica são subscons
cientes. A lógica não faz senão explicitar essas regras para o ho-
mem. um homem que não tivesse essas regras envisceradas como coisas
conaturais a seu espírito, seria louco. Um espírito pode ser extre
mamente primitivo e ao mesmo tempo ínteiramente lógico. No subcons
ciente humano cabem tesouros de filosofia, de conhecimento, que, em
bora inexpllcitamente, são condições para a sanidade mental.

Isto nos leva a admitir como plausível que, além dos
conhecimentos da lógica, existem também muitas outras coisas envis
ceradas e conaturais ao espírito humano.

O espírito humano percebe de modo muito claro a li-
gação que existe, de um lado, entre tôdas as regras da moral; de ou
tro lado, entre tôdas as regras da beleza; em terceiro lugar, entre
tôdas as regras da ordem. Ele percebe a ligação que essas regras
tem entre si e a ligação que elas tem com todos os princípios do
ser e da metafísica. O fato de êle perceber essa ligação faz com
que êle não fique louco, porque se constituíssem três mundos ã
parte, que não tivessem nenhuma relação entre si, e que não se en-
contrassem em nenhum vértice, êle ficaria louco. A unidade daquilo
que o homem vê com aquilo que o homem quer, e com aquilo que o ho-
mem sente; a unidade dos vários modos pelos quais êle vê o mundo
exterior, isto é, na ordem da verdade, na ordem da beleza, na ordem
da ordem. Se essa unidade não existisse, o homem ficaria louco. Ne
cessàriamente tem que haver um conhecimento anterior e subconscien
te nêle que ê o conhecimento de algo por onde tôdas essas coisas
são unas.

Qual ê êsse conhecimento?

Só e só pode ser o ser. Realmente, o que esta nessa
culminância ê a noção de ser. Daí vem a legítima afirmação de que
o espírito humano é capaz de conhecer os primeiros princípios da

ordem, do bom e do verdadeiro,a partir das maiores culminâncias da
metafísica. O espírito humano percebe como tudo isso ê ligado ao
ser. Há, portanto, uma espécie de primeira noção, ou primeira visão
do ser na sua totalidade, e com todas as consequências que em to-
das as ordens pendem da aceitação do ser com essa totalidade. £ es
sa primeira visão que constitui o objeto primeiro, simplíssimo, i-
nesgotável e riquíssimo de todo conhecer humano, como também de to
do querer humano, e também de todo sentir humano.

A noção do ser é sumamente substanciosa para o ho-
mem e ê o alimento próprio da inteligência humana, é o fim próprio
que a Sabedoria visa na ordem terrena. Aqui ressalvo as noções de
Deus e do sobrenatural, porque a noção de ser morre se não chegar
a Deus Nosso Senhor.

Porque o homem é ordenado, êle ficaria louco se o u
niverso não fôsse também ordenado. Seria impossível encontrar a de
sordem como condição normal e fundamental do universo, não ã manei^
ra de um desastre colateral que está nêle como uma cicatriz num
rosto bonito, mas como uma coisa que o desfeia inteiro. Ser e de-
sordem são antitéticos e o espírito humano não os aceita pelo pró-
prio princípio de contradição.

Em consequência, o indivíduo percebe que deve haver
ordem no universo; uma dessas ordens super-eminentes e fundamentais
que não são abolidas nem sequer pelas desordens que êle possa no
tar em si.

Êle percebe que tem uma tendência para o absoluto.
Essa tendência seria uma desordem, mas não uma dessas desordens da
fraqueza da carne, mas da essência de seu ser, se não houvesse al-
go no universo que satisfizesse essa tendência. Em virtude do prin
cípio axiológico, que é uma espécie de desdobramento da idéia de
ser, pelo princípio de que o ser é ordenado, pelo fato de o homem
notar em si essa tendência para o absoluto, êle nota também que, al
go na realidade externa deve corresponder satisfatoriamente a es-
sa tendência. Um absoluto deve existir.

Esta é uma prova que fica implícita na cabeça da
pessoa e que muito facilmente passa por sentimento, mas que não ê

aent imento .

A vida humana passa-se então numa série de atos feu
dais, de primeiros atos feudalmente subordinados ao grande ato-pri
meiro. Daí tira-se a noção de processo. Cada vez que a alma humana
entre em contacto com um ser tem um ato-primeiro.

Acabamos vendo que em matéria de filosofia como eiu
matéria de historia c igualmente verdade aquele princípio do prof.
Lefèbvre de que, quem não sabe o que procura, não sabe o que encon
tra. Quer dizer, quem vai se atirar na técnica filosófica sem ter
umas problemáticas anteriores, não encontra nada e se perde na ver
dadeira "silva rerum" da filosofia, em vez de verdadeiramente se o
rientar.

Esta problemática anterior é uma visão nativa do u-
niverso, nativa e reta. E una visão calma, multiforme em que, como
o espírito humano ê imagem da realidade exterior, por uma inocên-
cia, castidade, temperança e calma, é levado a ver o mundo exterior
como no fundo o ser é, com todos os seus contrafortes, com todos os
seus aspectos, com tôdas as suas pluralidades, com suas super- emi
nênc ias.

Hã, bem no fundo de tudo isso, uma atitude de alma
que é uma visão serena, plácida, ágil, dúctil, ao mesmo tempo mui-
to mõvel e muito imóvel a respeito do universo e que representa a
saúde da alma. Vendo a coisa como ela é, a pessoa vê também o fun-
do comum e abstrato a que as coisas se reduzem.

Essa ê propriamente uma virtude que faz com que a
pessoa, quando vai estudar filosofia, porque vê motivos para estu-
dar filosofia, procura na filosofia a explicitação de si própria e
instrumentos para se explicitar, muito mais do que uma coisa que e
la vai aprender e que de nenhum modo ela sabia.Nesse sentido é com
pletamente diferente o estudo da filosofia do estudo da química ou
da história em que a pessoa vai saber uma porção-de coisas que não
estavam em si.

Vemos isso muito bem no que diz respeito ao senso
lógico. A lógica não ê senão uma explicitação de uma saúde de alma
que ê o senso lógico. Êsse senso lógico dã exatamente ao homem a ca
pacidade de estudar lógica que êle não teria se não tivesse senso
nativo lógico.

Essa virtude ê uma espécie de virtude primeira, é u
ma espécie de polivalência, ao contrario das unilateralidades tre-
mendas do espírito que se entrega às paixões pessoais e que fica
todo hirto, todo eriçado, todo voltado para ver as coisas parcial-
mente.

Tenho a impressão de que o que houve no trânsito da
Idade Media para a Renascença foi a perda dessa espécie de castís-
sima e singularíssima flexibilidade de espírito que deu nas mil for
mas de paixões que surgiram posteriormente (1).

A visão-primeira corresponde ã minha velha idéia de
que o conhecimento ê algo que brota do fundo da cabeça do homem à
maneira de algo impreciso, que depois se torna desenho, depois re-
levo, depois estatua e por fim fala. Não é um caminhar de raciocí-
nio em raciocínio como quem vai de uma ilha para outra num arquipé
lago, mas é algo como quem tira de uma caixa, onde já estâ tudo con
tido.

Daí a minha propensão para considerar que a verda-
deira inteligência ê primeiro uma qualidade de equipamento, depois
uma qualidade moral por onde hã uma grande riqueza nessas percep-
ções primeiras e uma grande fidelidade em analisar tudo em função
das percepções primeiras, e que vem a ser a Sabedoria.

HOTA H Ver taubéa "A Renascença - II e III" - PCO.

Então o homem inteligente não é o verboso,o que faz
muitos raciocínios, etc. Por aí eu nego a inteligência a um certo
literato que, para mim, e o protótipo do sujeito que no primeiro
olhar viu pouco e, sobretudo, viu unilateralmente, depois falou e
raciocinou sem fim a respeito das parcélas de verdade que viu. Daí
vem também tôda a impostação de cultura anti-"universitãria" e an-
ti-cartesiana que é a nossa.

Quando a pessoa tem o ato-primeiro na ordem especu
lativa, isto é, conhece a verdade, e'na ordem prática, isto ê, co-
nhece o bem, e depois tem a vontade em ordem, isto é, ama o bem que
conhece, quando pela fé a pessoa recebe notícia da doutrina catõli
ca, ã medida que ela vai conhecendo cada ponto da doutrina, ela no
ta que aquilo é a perfeição, pela consonância com aqueles princí
pios primeiros, metafísicos que a pessoa tem.A pessoa acha tal coi
sa perfeita, tal outra coisa, etc., e, no total, ela compreende que
aquilo é a própria perfeição. E quando ela tem uma espécie de pri-
meira notícia global da doutrina católica, chega ãpercepção de que
existindo Deus, a Religião Católica tem que ser a Religião de Deus,
porque só Ela ensina tudo quanto diz respeito ao universo e a Deus,
de um modo deiforme. Vem daí um ato de razão que, iluminado pela
graça„ pode produzir um ato de Fé. vê-se a profunda harmonia entre
a razão e a Fé.

A Fé confirma êsse senso metafísico. Não só porque
a Fé contém em si ensinamentos metafísicos, mas porque seria im-
possível conservar a noção de ordem sem o apoio da Fe. Sobretudo
num mundo caótico como o de hoje.

A Igreja suscita isso no espírito das pessoas. Eu
tenho a impressão de que, por excelência, sua unidade é obra do Es
pírito Santo. Todos os dons do Espírito Santo, considerados em seu
conjunto produzem êsse estado de espírito. De maneira tal que a o-
bra da Igreja é estar restaurando isso. E as grandes conversões só
são conversões quando as almas se restauram dessa maneira.

Sabedoria

Isso tudo é, portanto, uma espécie de explicitação
do que seja a virtude da Sabedoria, e ê o contrário do embotamento,
o contrário da agitação. £ essa espécie de calma.casta da Idade Mé
dia, de que os homens perderam até a memória.

CAPÍTULO II
PROBLEMAS DO CONSCIENTE E DO SUBCONSCIENTE

O sentido corrente da palavra subconsciente é uma
espécie de sumário dos sentidos "fassures". Indica um conceito para
o qual mais proximamente ou menos, tendem as varias doutrinas a res
peito do subconsciente, É, no fundo,, um sentido ocultista.

O subconsciente seria uma espécie de segundo “eu",
vivendo dentro de mim mesmo, um segundo "eu" reduzido ao estado de
penumbra, ao estado de escravidão pelo lado consciente. £ um segun
do "eu" muito mais rico, muitc mais fino, muito mais sensível, mui
to mais ágil, e que uma formação cultural errada reduziu por essa
forma ao cativeiro.

Êsse sentido da palavra subconsciente está relacio-
nado com a espontaneidade. Êle c espontâneo por natureza, enquanto
que o consciente, segundo êsse sentido, é artificial. E por ser es
pontâneo êle ê sincero, porque a sinceridade de que tanto se fala
não ê senão a autenticidade do espontâneo. E por consequência o ar
tificial e hipócrita e farisaico.

Então ele é sincero e traz a lume a verdade inteira,
a verdade completa. Mas, quando a gente vai examinar melhor êsse
subconsciente, não é mais o "cgoH, mas um ser universal que existe
em todos nós e que é capaz de ser elevado âs altas esferas do pan-
teísmo, pelo uso da mescalina e de outras drogas que falam ao sub-
consciente.

De maneira que êsse subconsciente tem uma porta a-
berta para o ocultismo.

No subconsciente nÓs não distinguimos apenas o refe
rente às operações do pensamento, mas devemos notar que no subcons
ciente há outras coisas, por exemplo, a memória. Eu tenho no sub-
consciente uma porção de dados da memória que não estou invocando
de momento porque não me interessam, mas que eu possuo, apesar de
não me dar conta de que possuo. Por exemplo, quando estou dizendo
estas palavras, não estou me lembrando qual o nome dado ao fenôme-
no de encontre das águas do Rio Amazonas quando desemboca no mar.
Eu sabia que era pororoca, mas estava esquecido em mim como num fi^
chario. Estava no subconsciente, só porque a atenção não se voltou
para ali e não tirou aquela coisa.

As vêzes a subconscientizaçao e mais profunda e mes
mo quando eu quero não consigo tirar e, de repente, aquele dado
jorra ao meu espírito.

Há também as leis da lógica. As leis da lógica são
subconscientes. Todo indivíduo pensa de acõrdo com as leis da lógi
ca, mas não conhece a lógica, necessariamente.

Outra coisa subconsciente ê o mecanismo da associa-
ção de imagens. £ uma espécie de máquina que vai produzindo as as-
sociações de imagens segundo uma ordem muito bem feita embora não
se saiba exatamente como funciona essa ordem.

Outra coisa ainda são os pensamentos inacabados. Is
so corresponde ao "tacho de goiabas*' de que nós costumamos falar. A
pessoa tem pensamentos que vai começando a fazer, e porque não con
segue ir para frente ou porque não teve tempo, não termina aquêle
pensamento e vai tocando para frente. Acabamos pondo em evidência
que não se pode absolutamente fazer um nivelamento ou uma homoge-
neização no subconsciente, como se fosse uma coisa só, mas hã mui-
tas mansões no subconsciente.

As idéias vão se formando aos poucos no espírito hu
mano, mais ou menos como as figuras que são primeiro desenho, de-
pois relevo, depois estátua, e depois se movem. Esta formação gra-
dual das idéias acaba fazendo com que muitas delas fiquem mais ou
menos incompletas nc subctnsciente. Temos então idéias incompletas
a outro título.

Ha, portanto, um modo das idéias estarem no subcons
ciente que é tendendo a conscientização. Mas hã também um modo de
estar mórbido e preguiçoso da pessoa que não quer se dar ao traba-
lho de explicitá-las. Ou, então, da pessoa que tem pressupostos er

P.II, Cap. II
rados no subconsciente.

Uma espécie de conscientização ê apenas relativa. Ê,
por exemplo, a conscientização de um artista que toca música. Pelo
fato de êie ter tocado música, exprimiu uma certa coisa interior
que estava nele, que era subconsciente e tomou, ã sua maneira, um
certo grau de consciência.

Assim também, o pintor, quando reúne os vários dados
de um panorama e salienta um traço que êie não saberia encontrar u
ma palavra adequada para explicar, mas a gente vê que êie tem um
sentir daquilo que foi até capaz de acentuar aquilo no quadro com
muita finura. Então temos, assim, uma espécie de conscientização
"a meias" que até em muitos casos nao pode nem deve chegar ao seu
ponto final. Mas é fora de dúvida que, âs vêzes, homens de um gran
de talento conseguem chegar até a palavra para exprimirem isso, e
alcançam um grau de conscientização ainda maior.

Entre o subconsciente e a lógica hã uma relaçao in-
teressante. A gente vê, pela lógica, uma série de coisas, depois se
consulta o subconsciente. O subconsciente dã, para a formaçao das
premissas, uns outros elementos que entram por meio das associa-
ções de imagens e que pedem apresentar estridências. Então o indi-
víduo, utilizando-se de dados que estão no subconsciente, vai reti
ficando os elementos da lógica. Mas, por sua vez, a lógica vai or-
denando todas as noções que estavam no subconsciente, e vai consci
entizando de maneira que se estabelece uma espécie de harmonia en-
tre a lógica e o subconsciente.

A psicanálise, na medida em que procura governar o
subconsciente, age mal, pensando que apenas por meio de truques e-
la consegue guiar o doente. O truque pode ter algum emprego legíti
mo, mas a solução verdadeira é conseguir detectar o mecanismo do
consciente sõbre o subconsciente t: fazer com qut o homem governe to
do o seu ser. Isto é, propriamente, restaurar a harmonia dentro do
homem.

CAPÍTULO III

0 QUE E NA ALMA A CflMARA OBSCURA?

O que vem a ser o nascedouro do processo humano? O
nascedouro e uma tendência que a alma tem, enquanto ser, de se com
pletar. £ claro que ela utiliza as suas faculdades para isso. E é
claro que enquanto as faculdades da alma são, de algum modo ela,
também nela se dã um processo. O processo humano não se esgota sim
plesmente na inteligência ou na vontade, mas êle se esgota em algo
que está por detrás da inteligência e da vontade.

De tal maneira que, mesmo na moral, podemos falar
em defeitos que estão na vontade - por exemplo, o indivíduo é fra-
co de vontade - podemos falar em defeitos que estão na inteligên-
cia - o indivíduo é preguiçoso na inteligência. Mas, podemos falar
de certos defeitos que estão por detrás da inteligência e da vonta
de, como, por exemplo, a mã fé. A má fé é um defeito que se exerce
na inteligência, mas que existe na vontade, ê uma conjugação.

Existe dentro da alma uma certa região misteriosa
que poderia ser comparada com uma câmara obscura na qual se dá o
mais profundo elaborar dos atos de inteligência e de volição do ho
mem, e dos quais o que comumente se chama inteligência e vontade
não são senão prolongamentos.

Então, essa câmara obscura Õ chamada obscura por-
que ela imerge na obscuridade do subconsciente, das operações que
o homem produz sem que êle mesmo perceba muito claramente que êle
está produzindo.

Os filósofos quando falam de inteligência e vonta-
de, entendem uma coisa correta, mas eles pensam apenas nos fenôme-
nos conscientes da inteligência e da vontade. Nõs pensamos também nos
fenômenos subconscientes ou semi-consclentes da inteligência e da
vontade que ficam dentro dessa câmara obscura. Em vez de câmara obscu
ra, dever-se-ia chamar essa zona da alma de câmara semi-obscura ou
câmara esclarecível, porque o que há nela realmente é uma penum-
bra, e não obscuridade. £ uma questão de querer vê-la e saber vê-
la.

Uma outra imagem que poderia facilitar o trato do

assunto seria se nós considerássemos a inteligência e a vontade co
mo dois lados de um triângulo. Nos dizíamos que há um certo vérti
ce onde essas linhas se encontram. Êsse vértice poderia também se
chamar câmara obscura.

A afirmação de que o que há na câmara obscura pode
ser conscientizado encontra duas objeções:

por uma espécie de olhar interior direto, como Deus. De maneira que
há naturalmente nessa fina ponta da alma - expressão de São Fran-
cisco de Sales para falar da câmara obscura - hã um certo mistério
e o homem não tem de si o conhecimento inteiramente claro, como
Deus tem de si mesmo.

capazes de reter absolutamente tudo que se passa dentro do homem,
a câmara obscura sempre conservará uns restos de sombra cu algumas
sombras novas.

Isso não quer dizer que o homem com uma alta vida

espiritual não possa governar-se inteiramente. Governar-se no sen-
tido de selecionar inteiraraente as suas idéias e de pôr ejti ordem
suas impressões.

Portanto, a câmara obscura não pode ser considera-

da como um depósito de lixo no qual necessariamente entra poeira
por mais que se limpe. Mas hã uma espécie de obscuridade sagrada
como de um tabernáculo, e não mais do que isso.

Aliás, ela é tão elevada e tão nobre que poderia
ser chamada o tabernáculo da alma.

£ aí provavelmente que se encontra aquela zona da
alma,de que falava São Paulo, onde o gladio da palavra de Deus en-

tra e opera sua ação.

Pertence ã câmara obscura uma série de coisas que a
pessoa fêz e que até pensou com tõdas as regras do raciocínio cons
ciente e que pertencem, em si, ao raciocínio consciente. Por exem-
plo, o homem que está prestando atenção em vários automóveis para
pegar um taxi. Dão-se muitos fatos que são conscientes, embora não
estejam colocados no ápice da consciência.

Da mesma maneira, uma série de raciocínios morais
que a pessoa fêz são tomados nêsse gênero. A pessoa tem responsabi
1idade deles porque:

Essas coisas pertencem à câmara obscura porque es-
tão colocadas nos domínios da obscuridade.

Outra coisa que faz parte da câmara obscura são fa-
tos subtis que o homem não tem inteligência suficiente para consci
entizar. Só os homens muito inteligentes e muito dotados são capa-
zes de conscientizã-los. Por exemplo: o pânico de Goya. Goya soube
conscientizar naquele quadro o que um número enorme de pessoas sen
te a respeito do pânico. Essas são coisas conscientizãveis por ho-
mens de grande observação e de grande talento, que o homem comum
não conscientiza de fato.

Hã um aspecto especial da câmara obscura que é o se
guinte:

Técnica e olimpicamente falando, diríamos que o ho-
mem, quando toma uma deliberação de caráter geral, a toma muitr
conscientemente e que as pequenas aplicações são subconscientes.

Ora, em muitíssimos casos, o contrário é que é <
verdade. O homem toma certas deliberações de caráter geral sem pre:
tar a atenção devida â importância daquilo; e depois age de tal m.i
neira em função daquilo, que êle até se esquece da deliberação e
continua a agir. São normas gerais que êle põe no seu modo de pen-
sar e no seu procedimento. Por exemplo: um indivíduo que começa,
quando pequeno, a achar divertido ou cômodo não ver as coisas de
frente. Tomou um vicio mental. Não olhou de frente as coisas. O in
divíduo vê, na parede, uma mancha de umidade. A salvação seria de£
rubar a parede. Êle não quer fazer o esforço, diz: estas coisas de
umidade são muito complicadas, o melhor ê não mexer. Se vem alguém
e fala que ê preciso derrubar a parede, êle se sentirá ofendido. Ê
le tinha tomado a deliberação horrível de não olhar de frente as
coisas.

Haverá depois um momento em que êle explicitará: né
desagradável estar olhando de frente as coisas, eu não quero o-
1nar" .

Isto prova que existe uma deliberação de fato. Ela
é tomada e até transformada num pequeno sistema. A maior parte dos
pecados contra a Sabedoria, como também a maior parte dos atos de
virtude se dá assim.

Na câmara obscura os diversos tipos de raciocínio
se unem com as diversas perfeições simbólicas com uma série de a-
trações e movimentos da sensibilidade e de todas as faculdades da
alma.

Nesta zona o homem percebe precisamente aquilo que
é a unidade do seu espírito. S uma zona tão alta da alma que , por
um ato de conhecimento e de amor muito simples, a alma acaba perce
bendo aquela verdade muito simples, ou aquela bondade de Deus, mui
to simples, que ela foi principalmente chamada a amar.

Dizíamos que as grandes verdades gerais são aquelas
que estão na base de todo operar da inteligência, e, enquanto bem,
eetão na base de todo operar da vontade. Nessa ordem de idéias, te
moa a noção de ser. Essa noção todos a tem e a tem muito boa, por-
que, do contrário, seria impossível pensar. Por outro lado, essa no
ção é tão complexa que ê preciso dar uma aula de filosofia para

que a pessoa tenha a noçao do ser.

A idéia de que o ser é bom, e a idéia do amor ao ser,
são disposições tão primeiras que estão no nascedouro de todas as
operações da vontade.

Então o nascedouro das potências e êsses dados pre
liminares estão em conexão uns com os outros.

E muito natural que as potências em seus nascedou-
ros operem com as verdades e os bens, que são ponto de partida de
todo o resto. Tudo isso é muito harmonioso.

Nós sabemos que a vontade e a inteligência estão na
câmara obscura. Quanto ã sensibilidade, ê muito difícil dizer. Pa-
rece difícil afirmar que a raiz da sensibilidade esteja na câmara
obscura.

A sensibilidade do homem, simplesmente não é senho-
ra da inteligência e da vontade. Ela, por sua natureza, é comanda-
da pela inteligência e pela vontade. Mesmo quando ela domina é por
que a inteligência e a vontade permitiram e quiseram. Não ê por u-
ma foiça propila dela.

Assim sendo, parece que a sensibilidade se situa tõ
da fora da câmara obscura.

A câmara obscura é a detentora dos maiores recursos
e tesouros da inteligência e do conhecimento. E é, ao mesmo tempo ,
a grande muda. Então a inteligência toma essas coisas, as formula,
conscientiza, etc.

E êste ê um fato que os partidários da filosofia
tradicional não colocaram em evidência e que os esotéricos procura
ram trabalhar de modo malévolo.

CAPÍTULO IV

PROCESSO DO PENSAMENTO

Existe no espírito humano uma ordem primeira, profun
da e fundamental, pela qual a inteligência humana, pelos seus pres
supostos e exigências mais profundas, tem a tendência a acreditar
nos sentidos, e a dar valor aos dados dos sentidos, admitindo - os
como verdadeiros. Sobretudo dar valor em relação ao mais cognosci-
tivo de todos os sentidos, que é a vista. A tendência do homem pa-
ra acreditar no que vê, e para tomar as coisas como êie as vê, é u
ma tendência enorme.

Em virtude dessa tendência, quando o homem percebe
que hã algum conflito entre aquilo que êie vê e aquilo que a inte-
ligência lhe apresenta, isto cria nêle uma espécie de situação do-
lorosa, de conflito, que é uma como que dilaceração interna dentro
dêle. O exemplo mais banal seria o do indivíduo que coloca ura bas-
tão dentro d'ãgua e percebe, tem a visão de que o bastão está que-
brado. Na realidade, ele sõ consegue alguma paz para sua alma quan
do passa a mão pelo bastão, dentro d1agua, e percebe, ao menos pe-
la retificação de um outro sentido, que o bastão não está quebrado.
Então, um outro sentido depondo a favor da inteligência dã, pelo me
nos, um pouco de apaziguamento. Depois, a inteligência descobre a
razão e então se tranquiliza. Mas se ela estivesse ante um confli-
to inexplicável, diante dos dados apresentados pelos sentidos, e
dos dados racionais, ela teria a sensação de estar voltada contra
si mesma, sofrendo o drama de que Nosso Senhor falava: "todo reino
dividido contra si mesmo perecerá".

Nos nossos estudos estamos vendo que tudo aquilo que
se passa no animal é como que uma imagem do processo intelectual.
Portanto também no homem, na sua zona animal, se passa algo de anã

logo ao processo intelectual do homem .

Poderiamos dizer que os dados fornecidos pelos sen-
tidos são encaminhados para algo que se chama o senso único, o sen
ao comum, que é um sentido único que coordena tôdas as sensações de
maneira a formar com elas um todo. Essa formação de um todo é algo
de arquitetônico que jã tem em si algo de sapiencial- O dado forne
eido pelo senso único ê utilizado pela estimativa por meio de uma
série de correlações, de comparações, de diferenciações, por onde
aquela nota única obtida pelo senso comum é susceptível de um enri
quecimento extrínseco indispensável, por meio de uma série de con-
trastes e semelhanças. A faculdade que faz isso é a cogitativa no
homem e a estimativa no animal. £ a partir dessa estimativa que o
animal se orienta e age.

Isto é extraordinariamente parecido com o processo
mental, porque se trata de ver como as coisas se entendem no ser,
e depois formar uma idéia, uma noção do ser. Formada essa noção,
deve-se diferenciá-la das outras, isto é, definir num sentido e es
tabelecer os limites da diretriz e uma atitude. De maneira que o
cicio, por assim dizer mental do animal, é a imagem do ciclo men-
tal do próprio homem.

Isso mostra que o homem na sua vida intelectual, es
tã constantemente utilizando dados que lhe são fornecidos, não só
pelos sentidos, como se costuma dizer, mas por êsse jogo. Quando
trato de entender uma cadeira ou um aparelho de rádio que me forn£
ce sons, não estou apenas utilizando isso e fazendo uma idéia. Mas
estou usando êsses dados sensitivos, que vão para uma nota comum.
£ sobre esta nota comum que mais especialmente a minha inteligên-
cia vai se debruçar para fazer uma imagem do conjunto.

De maneira que o objeto próprio da minha inteligên-
cia analisando os dados dos sentidos, não são tanto os dados dos
sentidos, mas é essa nota comum dada pelo senso comum que liga os
dados e se apresenta como que jã meio preparados em sua própria a-
nimalidade para a formação da noção da coisa.

Quando eu faço as comparações de contrastes a analq
glaa, também estou empregando outro equipamento sensorial e fisio-
lógico, a tal ponto que o bicho também o tem. Até quando eu crio
algo com a inteligência, sou servido pelo mesmo mecanismo que tem
o animal quando êle tem imagem e fantasia. Uma fantasia que se-
ria mais ou menos adaptada ao temperamento e individualidade dêle
às coisas que êle viu. Em cada passo de meu processo puramente de
alma, estou aplicando processos que me são fornecidos por uma ela-
borAção paralela de figuras, imagens e fantasia.

Isso me faz compreender melhor a riqueza e simulta-
neidade do operar humano dentro de mim mesmo e me faz compreender
também o seu têrmo final.

Esta divisão não corresponde às divisões clássicas
de consciente e subconsciente, de corpo e alma, mas ê uma divisão
que se ajusta a tôdas elas.

O que chamamos de primeira cabeça corresponde ao que
seria a parte do homem que tem algo de comum com o anjo, ou a par-
te do conhecimento e da ação do homem naquilo que êle tem de comum
com o anjo. Enquanto que a 2ã cabeça corresponderia àquilo que o
homem tem de comum com o conhecimento, com o instinto do animal.

Portanto, antes de mais nada ê interessante nos ver
mos que diferença existe entre o conhecimento do anjo e o conheci-
mento humano.

O anjo ê um ser cognoscente e voltado sòbre si mes-
mo, de tal maneira que êle não precisa de nenhum objeto externo pa
ra conhecer. Êle vê a si mesmo e, em si, êle vê tudo. Inclusive as
coisas materiais. Tudo que Deus faz, Êle faz de maneira que passa
pelo conhecimento e pela própria natureza do anjo. De tal maneira
que se Deus, por exemplo, move uma garrafa aqui na Terra, ou perná
te que um homem mova uma garrafa, essa ação de Deus antes de che
gar ã garrafa passou pela inteligência do anjo, file portanto vê tu
do dentro de si.

O homem, não. O homem é como um ser voltado para fo
ra e que pode ver tudo menos a si mesmo. De modo que êle só pode
ter conhecimento das coisas que estão fora dêle. Ora, o "fora dêle"
aqui precisa ser entendido no sentido de fora do conhecimento coroo
tal, não fora do corpo humano. Êle pode, por exemplo, perceber um
ato de vontade nas suas consequências, ou uma manifestação interna
da fantasia. Mas sempre voltado para fora do conhecimento. E mesmo
aquilo que diz respeito ao conhecimento, êle não vê em si mesmo, ê
le vê nas suas consequências. Se eu posso conhecer, por exemplo,
qual ê o meu feitio de raciocinar, eu não conheço isso por uma vi-
são direta da minha alma, da minha inteligência que raciocina. Mas
eu vejo pelas manifestações dessa inteligência, portanto nas suas
consequências. Essa ê a diferença essencial entre o conhecimento
humano e o conhecimento angélico.

Depois de nós termos visto o que o homem tem de co-
mum e de diferente com o anjo, vamos ao que o homem tem de comum
com o animal.

O homem tem de comum, como animal, que existem nêle
todas as tendências de ordem meramente sensitiva, meramente animal.
Mas existe uma grande diferença entre ambos. S que o princípio que
informa tõda essa ação sensitiva e portanto animal do homem, esse
princípio ê de ordem racional. De tal modo que o homem sente como
o animal e vê como o animal e ouve como o animal, mas no sentir, no
ver e ouvir do homem, essas ações são informadas pelo princípio ra
cional. Aquilo que no animal se faz por mero instinto, que é uma
força cega, faz-se no homem por um princípio racional, vem embebi-
do de coerência, vem iluminado pela luz de natureza espiritual.

Isso tem como consequência que nós não podemos fazer
uma divisão absoluta do homem, criando um hiato entre a natureza
racional e a natureza animal. Porque a natureza espiritual do ho-
mem está tõda embebida na natureza animal. E também a natureza ani
mal está de tal modo unida ã racionalidade que, aquilo que no ho-
mem ê mero instinto, já vem todo cheio e denso de racionalidade. 0
que cria muito nitidamente os dois princípios: o homem enquanto an
jo e o homem enquanto animal, sem que seja apenas anjo, mas seme-
lhante ao anjo, sem que seja animal, porque também só tem uma seroe
lhança com o animal.

Tudo isso não impede que se possa legítiM£unente fa-
zer aquela divisão de que nós falamos no início. Primeira cabeça é
a consideração do homem naquilo que êle tem de comum com o anjo e
segunda cabeça é a sua consideração naquilo que êle tem de comum
com o animal. O êrro de Descartes consistiu em querer cortar as
duas coisas. É um homem puramente anjo.

Nos com essa palavra queremos indicar que cada um
desses modos de funcionar do homem e tão complexo que poderia ser
considerado quase como um homem todo. Quando predomina o aspecto
angélico, hã uma predominância do angélico, mas é o homem todo que
está funcionando ali. Do outro lado acontece a mesma coisa, predo-
mina a parte animal, hã um certo influxo animal muito nítido, mas
ê o homem todo que está funcionando ali.

A lô cabeça funciona sobretudo em função do princí-
pio do "logo" e do "portanto". Quer dizer, ela raciocina. Ela põe
as premissas e daí ela tira as conclusões. Ssse ê o seu modo pró-
prio de funcionar. Isso tem uma certa semelhança com a intuição an
gélica, com a visão angélica.

Isso tem também, como consequência, que o próprio da
15 cabeça é ter visões globais, visões universais. Assim, a 1É ca-
beça, pelos seus silogismos, pelos seus raciocínios, não quer che-
gar apenas a uma ou outra verdade, mas ela tende a uma compreensão
universal, harmônica e una do universo. Isso por um fato que está
impresso no fundo da natureza humana e que deveria estar, porque o
homem é feito ã imagem e semelhança de Deus. De modo que a lâ cabe
ça tende, antes de mais nada, para êsse quadro generalíssimo da or
dem do cosmos.

Por outro lado, a 2ê cabeça tem um modo de funcio-
nar inteiramente distinto. O próprio da 2^ cabeça é perceber a rea
Lidade e se deixar impressionar por ela, degustã-la e viver dela.
Assim, por exemplo, a pessoa que ve uma flôr muito bonita, tem um
movimento que é ao mesmo tempo um movimento da fantasia, de tudo
quanto hã de simbólico naquilo, mas de uma fantasia ao mesmo tempo
cheia de racionalidade. A pessoa tem êsse movimento de simpatia e
de admiração pela flõr, não em função de qualquer raciocínio, mas
por uma ação de co-naturalidade da segunda cabeça, da sensibilida-
de iluminada pela razão.

A 2â cabeça é dotada de uma aptidão própria para en
xergar as coisas materiais. Não como um bicho, mas a ver as coisas
materiais naquilo que elas são ã maneira de símbolos, de imagens e
de semelhanças das coisas espirituais. De maneira que tem essa ca-
pacidade de perceber as coisas espirituais nas materiais e de pas-
sar das coisas materiais para as espirituais por um modo próprio,
que é o modo simbólico. Essa capacidade caracteriza muito a forma
de apreensão da 2â cabeça.

£ por aí que se mostra bem como a ação da 2Ê cabeça
se diferencia da do bicho.

Mostra também muito bem qual é o modo pelo qual a
2 — cabeça retém as verdades. Ela as retêm como que encarnadas nos
seus símbolos, presente nos seus símbolos, e a esse título atingin
do a sensibilidade do corpo e a sensibilidade da alma. O vibrar em
contacto com o símbolo é o vibrar com a sensibilidade da alma, ao
mesmo tempo que se entende o símbolo* é, creio eu, um modo específi.
co da 2a cabeça ter as suas operações intelectuais.

A parte inferior da 2â cabeça sofre a repercussão
das coisas que acontecem na vida meramente vegetativa. Por exemplo,
a ação do calor pode provocar no homem uma reação de ordem meramen
te vegetativa, isso é conhecido pela parte animal do homem.

O mesmo se daria da vida vegetativa com os elemen —
tos minerais.

Evidentemente, todas essas divisões que fazemos não
separam o homem em seres distintos. São apenas as várias fases do
processo do conhecimento. E como a vida do pinto que tem diversas
fases e nem por isso são vãrios pintos.

Assim como o gato tem algo por onde ele é gato e tu
do nêle ee passa de modo diferente do que no cachorro, assim como
de gato para gato, se observarmos bem, hã diferenças de individua-
lidade, hã uma certa nota constitutiva e distintiva que se proje-
ta em todo êsse conjunto, e que dá a êsse operar uma nota caracte-
rística e individualizante, assim também isso existe em minha par-
te animal. Isso condiciona todo o meu operar mental. Esta coisa a-
nimal que hã em mim ê algo que caminha para um certo tipo de virtu
de, para uma certa forma de perfeição e santidade. E a graça me é
dada, jã relacionada com isso.

Então tenho a minha luz primordial que é algo para
o que, em seus bons aspectos, todas as notas individualizantes de
minha animalidade jã foram orientadas e criadas. E aqui se compre-
ende até as últimas profundezas, o que vem a ser a luz primordial,
num indivíduo, numa raça, etc. Aqui se compreende todo o plano de
Deus por meio de causas segundas. As intervenções ao criar a alma,
ao criar a graça, e também o plano de Deus com a mais alta direção
do mundo. Ê realmente a mais alta direção do mundo. £ a constitui-
ção interna dos seres que vão jogar no tabuleiro que Êle quer que
se jogue. Temos aqui elementos muito ricos para uma visão boa e bem
feita do que seja a luz primordial (1).

Tomando o caso da pessoa que vê a flõr, nõs podemos
nos perguntar se nessa ação de ver e admirar a flõr não haverá al-
go que jã seja de 13 cabeça. De fato, se formos estudar melhor o
fenômeno, veremos que nêsse ato que é feito por pura ação de co-na
turalidade em relação ã flôr, jã entra um pequeno princípio de a-
firmação de normas gerais, um princípio de afirmação de algo abs-^
trato. E, realmente, a noção de belo jã entra: "existem coisas be-
las "como hã coisas belas no mundo". Isso jã é teórico, jã é da
lê cabeça.

E, se nõs observarmos bem êsse fenômeno, nós vere-
mos que, de fato, poderemos subir da flôr até a ação puramente abs
trata da lê cabeça. É uma subida por degraus muito lentos. Com efei
to, a pessoa observará a flôr, observará um prédio muito bonito,
observará uma catedral muito bonita, observará uma série de coisas
muito bonitas e, em cada uma delas, vai-se enunciando um pré-prin-
cípio teórico. Êsses princípios, por uma açao que ainda estã na 2â
cabeça, constituirão aos poucos fragmentos de sistemas, não ainda
NOTA 1^ Sobre luz primordial, ver pág. 134.

com a clareza do raciocínio, mas como impressões muito fortes que
dominam a pessoa. Até que, num dia, isso brotará na lâ cabeça, co-
mo um verdadeiro sistema de princípios sôbre o belo. Isso foi pre-
parado pt>r uma longa série de observações, de meditações e até de
sensaçõe» que, aos poucos, foram sendo ordenadas - exatamente porque
a 2â cabeça está impregnada de racionalidade.

Então chegamos à conclusão de que, entre a 13e a 23
cabeças existe, de fato, uma diferença muito nítida.A transição se
faz por am processo muito lento mas contínuo, como são em geral as
transiçõ&s de tôda a Criação. Assim, o pinto ao sair do ôvo, reali
za um ato transicional muito importante, porque era ôvo e passa a
ser pinto, mas para o bom observador, dentro do ôvo já estava o
pinto inceiro. Aquilo foi-se fazendo por uma transição muito len
ta, que num momento eclodiu, passando para um estágio de vida supe
rior. O mesmo se dã entre a 22 e lâ cabeça. S uma transição muito
lenta até um momento em que aquilo se transforma na enunciação de
um princípio, de uma tese da 1- cabeça.

As solicitações da lâ e da 2â cabaça são involuntá-
rias; sáo, digamos, cegas. £ preciso haver alguém que escolha en-
tre as djiversas tendências. Êsse alguém ê o homem plenamente, o
"eu" livre e senhor de si. Êie tem a liberdade de fazer com que pre
domine 6, 13 cabeça, ou que predomine e vença a 2ê cabeça.

Portanto, tomada a coisa de um modo simples, quem
domina no homem e quem domina nessas cabeças é o "eu", ou é um "ô-
Iho" quti observa as duas cabeças e escolhe entre elas.

A êsse respeito me parece dever-se dizer o seguin-
te; a 2&I cabeça, por muitos lados ê superior à lã. Ê superior por-
que tem um contacto com a realidade muito mais vivo. Ela pode cor-
rigir muitas vêzes a lâ cabeça, quando a 13 quiser simplificar uma
coisa. Pelo contacto vivo com a realidade, ela terá uma percepção
quase iii<ediata de que aquilo não ê verdade. Mas, considerada a coi^
sa na o?"dem ontológica, a 12 cabeça é superior a essa evidência. A
capacidade do raciocínio teórico e de um nível superior e domina
realinente o outro. De modo que, entre as duas cabeças, a que tem
preponderância é a lã. E a prova de que ela tem preponderância es-
tã em que mesmo quando o "olho" dã adesão ã 2â cabeça, êle vaià 13
cabeça procurar um pretexto para a adesão â 23. O diabético que co
me açúcar sabendo que isso faz mal, arranjará uma desculpa na 13
cabeça, por exemplo, dira: "a medicina tem-se enganado tantas ve-
zes que ê possível que ela também esteja enganada no meu casò". Se
êle não tivesse essa noção ou qualquer semelhante, êle não conse —
guiria comer açúcar. Quer dizer, a 13 cabeça nao cederia.

A 13 cabeça tem uma função rectrix tal, que quando
ela está colocada diante de uma determinada verdade que se apresen
ta a ela de maneira indiscutível, isso exerce uma espécie de impé-
rio sobre o "olho".

Agora, onde ê que nasce a possibilidade do indiví-
duo ter certezas e entretanto haver evasões em outra direção?

A certeza tem graus. E a evidência é uma certeza que
tolhe tôdas as saídas em contrário. Mas, quando hã graus de certe-
za menores, embora a certeza continue certeza, porque ela e menor
do que a evidência, fica aberto um campo para, na 23 cabeça, exis-
tirem impressões em sentido contrário, não completamente domina-
das. E então aparece uma espécie de dualidade de certezas. Enquan-
to o "ôlho" considera a 13 cabeça, êle tem uma certeza, quando o-
Iha para a 23 cabeça, encontra uma montagem de quadro que a certe-
za da 13 cabeça não foi bastante forte para extinguir.

Então cria-se uma situação de conflito para o"ôlho"
que recebe de um lado uma certeza, mas, de outro, um conjunto de im
pressões que parecem combalir aquela certeza. Vivem nos flancos da
quela certeza, mais ou menos como dentro de alguns peixes grandes
vivem peixes pequenos. Assim também vivem êsses bichos ou micróbi-
os nocivos, dentro das certezas do homem. Assim, essa espécie de
certezas com sombras crepusculares, vive no indivíduo.

Êsses dois fenômenos constituem a fonte de perplexi
dades para o "ôlho". O "Ôlho" fica colocado na situação que fica o
homem dentro da Religião. Pascal dizia que na Religião hã bastante
luz para que o homem que realmente queira ver a verdade a veja, mas
hã bastante sombra para que o homem que não a queira ver não a ve-
ja. Isso pode-se dizer, não de cada um dos dados da 1- cabeça, mas
do conjunto da produção da lã cabeça.

É errada a posição da pessoa que ache que deve-se
sempre dar razão ã 15 cabeça contra a 25 cabeça sob o pretexto de
que é sempre preciso dar razão à razão contra os sentidos.

Hã um comprimento de onda em que isso é verdade,
quando se trata das tais objeções de sombra, das tais certezas de
sombra, de penumbra, que são fenômenos viciosos da 25 cabeça.

Mas a 25 cabeça tem também a função de controladora
e comp1ementadora da 15 cabeça, legitimamente. Porque a 2â cabeça
não é um defeito no homem, mas é uma rxqueza. Ela não ê um fruto
do pecado original, embora tenha sido viciada pelo pecado original.
Mas a razão também foi atingida pelo pecado original.

O verdadeiro do homem é pegar os dados da 15 e da
25 cabeças e confrontã-los em grande parte pelo processo da "con-
versio ad phantasmata". E então ligã-los para fazer conferir um com
outro, para formar uma certeza total e humana. Uma das coisas que a
meu ver é muito importante dentro da vida intelectual e da vida in
terior é saber assegurar a colaboração das duas cabeças. Em todo es
tudo, em todo trabalho essas duas cabeças devem operar juntas.

O "olho" tem a função de temperar ambas as cabeças.

Há muita gente que por relaxamento, por displicên-
cia, deixa na 23 cabeça uma porção de impressões contraditórias cora
a 15. Algumas validas, outras não válidas. Esta e uma atitude de
alma muito mã. É preciso ir sempre conferindo uns conhecimentos com
os outros.

As vezes ê preciso acudir à 23 cabeça para obrigã-
la a abandonar certos hábitos, categorias mentais que, depois de
testadas, verificou-se que não são válidas. E preciso, algumas ve-
zes, quase que fazer uma reeducação e obrigá-la a aceitar as coi-
sas de outra maneira. £ uma espécie de pedagogia do "õlho" em rela
ção ã 23 cabeça que é muito necessária para o comum dos espíritos.

Deve haver também a mesma violência em relação ã 1-
cabeça quando ela é cartesiana e se recusa a aceitar os dados "nuan
cês" da realidade, dados pela 2- cabeça. Ela muitas vêzesê simplis
ta, preguiçosa, etc.

O inundo da 25 cabeça, quando não é controlado e fi-
ca entregue a si mesmo, forma uma espécie de universo fechado, obe
decendo a uma espécie de dialética própria e de criteriologia pró-
pria, cujo fim último ã a satisfação dos instintos. E uma visão do
universo relacionada apenas com a sua existência, com os dados for
necidos pela 25 cabeça.

Se o homem não toma essa posição equilibrada entre
a 15 e 23 cabeças, êle toma uma posição errada diante de todos os
problemas da vida. £e êle se deixou levar por êsse falso dilema, aí
está o germen de tôdas as heresias posteriores. Por exemplo, o i-
dealismo afirma que sô existem as verdades do mundo interior - 15
cabeça; o realismo diz, ao contrário, que só existem as verdades
do mundo exterior - 23 cabeça - e atrás de um e outro estâagnose.

3■ ° papel da "conversio ad phantasmata"

0 homem, porque tem unidade em todo seu ser, pede a
harmonização entre as idéias da cabeça e a sensibilidade da 2-
cabeça. Por causa disso, os conceitos abstratos nêle, só chegam ao
seu têrmo final de elaboração quando são convertidos depois em ima
gens ou figuras. Essa conversão ãs imagens concretas ê o que chama
remos de conversio ad phantasmata.

Por exemplo, o belo se dã quando um conceito de or-
dem contido em qualquer coisa é reduzido a um certo fantasma, que
dã ao homem, na 2â cabeça, uma sensação de ordem, mas uma sensação
de ordem bonitat em que o fantasma produz uma idéia de beleza. Te-
mos aí, nessa conversio ad phantasmata, a geração da beleza saída
de dentro da ordem. De uma ordem quer enquanto apresentada num fan
tasma, dá uma idéia particularmente rica dessa ordem.

Não adianta a lâ cabeça ter visto as coisas especu-
lativamente. Enquanto isso não fôr transposto para a 2â cabeça nos
termos em que ela apanha e é capaz de degustar, hã como que um se-
gundo homem dentro do homem,que fica fundamentalmente insatisfei —
to.

Êsse fenômeno ê doentio, é defectivo?

Tudo leva a crêr que antes do pecado original a tran
siçao de uma cabeça para outra se desse com toda a harmonia. O fa-
to de agora apresentar desarmonias tem algo de defectivo. Mas essas
desarmonias existem nos homens mais sadios de depois do pecado ori
ginal, e portanto não são doentias. Se bem que alguma doença possa
acentuar a desarmonia decorrente do pecado original. Mas o proces-
so, em si, não é absolutamente doentio ou defectivo.

A afirmação de Camões de que "um fraco rei faz fraca
a forte gente" ê, também, uma espécie de conversio ad phantasma-
ta, porque fala muito ã 2â cabeça. 0 princípio filosófico que está
enunciado aqui, enunciado secamente, não falaria ã 2â cabeça, se-
ria: tal é o papel do rei dentro do Estado que, se êle fôr fraco,
todo o Estado se debilita.

Outro exemplo seria a frase de Churchill: "nos cam-
pos dos combates humanos, nunca tantos deveram tanto a tão poucos",
Ê o mesmo que dizer: "Povos, ouvi. Vamos aguentar duro e somos pou
quinhos". £ o que está no fundo disso, mas ao mesmo tempo está e
não está.

Que relação tem a sensibilidade da 2^ cabeça com o
processo de conversio ad phantasmata? Eu diria que esta parte da
alma prepara, pelos mecanismos de analogias, pela finura de suas
percepções, pela delicadeza e acuidade de suas vistas, o conheci-
mento de uma série de analogias entre as coisas sensíveis que lhe
caem debaixo dos olhos. Prepara assim grandes conjuntos, tão claros
e bem feitos que dêles como que se despreende uma noção teórica
bem feita. Então esses quadros vão harmonio&amente preparados para
a inteligência, de modo que a inteligência produz, com êles, noções
abstratas esplêndidas e muito ricas.

I

Hã uma espécie de processo do fantasma para o prin-
cípio, que é o paralelo harmônico do processo de passagem do prin-
cípio para o fantasma, e que faz com que uns se alimentem dos ou-
tros. Ura processo não é o contrario do outro, mas se apoia no ou-
tro, como a fõrça centrípeta e a centrífuga. De tal modo que as
duas coisas possam caminhar juntas.

Papel de tõdas as coisas sensíveis dentro da cultura

Essa verificação nos leva mais longe, porque ficamos
compreendendo melhor o papel da arte e o papel de todas as coisas
sensíveis dentro da cultura. Que consiste em dizer a mesma coisa
que - de outro modo - o raciocínio diz ã razão, mas numa linguagem
própria e quase intraduzível, à maneira de fantasmas para os senti
dcã ( 1) -

Exatamente uma das criticas que vazemos ã arte mo-
derna ê que ela não respeita isso. Fazer, por exemplo, uma mesa de
um bloco de madeira pesadíssimo, baseada numas pernas muito finas,
mesmo que as pernas sejam feltas.de um material muito resistente,
desafia essa parte da alma que ê a 23 cabeça. Ela vendo uma coisa
tênue, fica hirta, crente que aquilo vai cair.

A partir das considerações que fizemos sôbre a con-
versio ad phantasmata, vimos que era uma operação muito subtil, por
que é a aplicação do conceito geral a um ser concreto, individuali
zado, de tal maneira que se possa compreender esse ser pela rela-
ção que êle apresenta com a idéia geral.

NOTA Ver às pags. 110 e ss. o papel da Metafísica Viva

Desse ponto de vista, qualêo termo da operação men
tal?

É o seguinte: Eu sei, por exemplo, o que é cadeira-
conceito geral - analiso um objeto concreto e vejo que êle ê cadei^
ra. Então, quando digo que isto é cadeira e formo um juízo sobre
isso, nisso terminou a minha operação mental. Mas é preciso dizer
que essa conversio ad phantasmata tem ainda alguns pontos reversí-
veis. Ao mesmo tempo que digo que isto ê cadeira, digo cadeira ê
isto, no sentido de que, ao conhecer o indivíduo de uma espécie cu
ja nota genérica estã na minha mente, eu enriqueço de algum modo o
conceito que estã na minha mente. O próprio conceito universal se
robustece de algum modo pelo fato de eu ter conhecido aquilo que
em concreto estã debaixo de meus olhos.

Esta consideração ainda ê mais clara se eu a vejo
em função da polidez. Posso ter uma noção genérica do que ê a poli
dez. Se vejo uma pessoa ter uma atitude muito polida com outra, di
rei que o ato foi de polidez. Mas, de outro lado digo: polidez é is^
to. Tendo visto a polidez em ação, enquanto praticada, ela adquire
aos meus olhos uma riqueza de conhecimentos que ela não tinha no
puro conceito abstrato. E a conversio ad phantasmata não é apenas
algo que morre no concreto, no individual, mas ainda deita uma úl-
tima luz reflexiva e indireta sobre o geral.

O termo do processo mental a partir dos dados da 2â
cabeça é análogo ao descrito acima. A 2â cabeça dã os dados que vão
se reunir no senso comum, A inteligência pega êsses dados unifica-
dos e opera sôbre êles tirando dali um conceito geral. Mas depois
de atingido êste conceito geral, a inteligência entrega de nôvo o
resultado de seu trabalho ao senso comum, que, por sua vez, vai
conferir o conceito obtido com a realidade. Assim, a 25 cabeça pa£
sa a ver as coisas concretas de uma forma mais intelectualizada.

AÍ se entende o que vem a ser a sabedoria aplicada
ao processo mental. Diz-se que a sabedoria é a tendência para o
fim, mas diz-se também que a sabedoria ê o percurso harmonioso e ín
tegro de todo o processo mental a respeito de uma determinada coi-

P.II, Cap. IV
sa, o hábito de percorrer êsse processo mental inteiro de um modo
devido, a respeito de cada coisa.

Qual é a noção por onde as duas coisas são sabedo-
ria? E que fazer o percurso íntegro do'processo mental a respeito
de uma determinada coisa até o seu termo inteiramente maduro e aca
bado, é visar, no processo mental o seu fim. E, a um processo men-
tal afinalístico, que pára pelo meio, falta a virtude da sabedoria
que pede que cada coisa chegue a seu fim. De maneira que se enten-
de uma espécie de duplo jôgo da palavra sabedoria. Em última anãli
se, sempre que a pessoa comete um erro, comete uma falta de sabedo
ria, porque se o processo mental tivesse sido aplicado com tõda a
ponderação e tõda a maturidade, ela não teria caído em erro.

O objetivo do homem consiste em ter um conhecimento
das coisas ao mesmo tempo abstrativo e simbólico. De maneira que o
homem só tem a idéia completa de uma determinada coisa, como tam-
bém de uma determinada virtude moral, quando toma conhecimento, na
coisa, de tudo quanto ela pode apresentar de abstrativo e simbóli-
co.

Quando êie considera uma virtude moral, enquanto ê-
le não conhece alguns símbolos relativos a essa virtude moral, o
seu conhecimento também não é completo.

Então se poderia dizer que para o conhecimento to-
tal da coisa há duas vias: a abstrativa e a simbólica.A via abstra
tiva ê aquela que, por meio do raciocínio, chega ã verdade; a via
simbólica é aquela que, operando sobre o fato e vendo que determi-
nadas formas, côres, sons, sensações, etc. tem uma misteriosa rela
ção com as disposições da alma humana, vai procurar o conhecimento
dos valores simbólicos existentes dentro dessa coisa.

Suponhamos que o nosso processo abstrato vai se dar
sôbre estas canequinhas que estão aqui. Então, na primeira fase te
mos uma visão meramente animal das canequinhas e o recebimento dês
ses primeiros dados por um aparelho sensitivo - a cogitativa - que
recebe tôdas as impressões em suas devidas medidas e valores. Em
seguida, vou percebendo que há nas canequinhas uma certa proporção,
uma certa harmonia e chego a afirmar: elas são harmônicas. Depois
relaciono a impressão de harmonia que tive vendo, as canequinhas,
com a mesma impressão que tive vendo outras coisas e vejo que são
tôdas harmônicas. Em dado momento, a multiplicação do mesmo adjeti^
vo a objetos muito diversos levanta em meu espírito uma dúvida: co
mo pode dizer-se a mesma coisa de seres tão diversos? Não haverá êr
ro? Daí nasce a pergunta: o que é a harmonia? Pode-se dizer "harmo
nia" de seres tão diferentes?

Para responder, faço a análise da harmonia enquanto
concretamente considerada em um ser e aplico aos outros seres con-
cretos para ver se convêm. Vejo que realmente entre êles existe al
go de comum, mas que estã num campo superior. Então vou tateando
um ser, outro ser, etc., e levando os dados para êsse campo mais
alto para ter a idéia acertada do conceito comum a todos os seres
que vi. Com êsse processo de retificação do conceito e das impres-
sões, vou limpando-o das confusões.e das escórias.

Vem então a formulação de um conceito abstrato cri£
talino e de contornos nítidos, sôbre a harmonia.

Formado o conceito, eu dou uma última reordenação
nas impressões, e passo a comparar o conceito nõvo com os outros
conceitos que tenho, em duas gamas, comparo - o com conceitos muito
afins e com conceitos muito contrários. Tomo então a deliberação de
nunca mais empregar o conceito senão nêsse sentido preciso, de nun
ca deixar de qualificar de harmônica uma coisa que é,de nunca clas^
sificar uma coisa que não 6.

Encerrado dessa forma o processo, deixo o conceito
ir descansar na câmara obscura, para poder usá-lo quando precisar.

Os equipamentos da 13 e da 2ã cabeças não visam ex-
clusivamente o simbolismo nem a abstração, tem uma série de outras
finalidades. Porém, analisando-se as operações da 2â cabeça, veri-
fica-se que há nela uma propensão para admitir a idéia de que o
aspecto simbólico de uma coisa revela sua essência recôndita. As-

P.II, Cap. IV 93.
sim, quando o indivíduo olha uma coisa, êle tem a sensação de
que as exterioridades daquela coisa lhe revelam, através dos senti
dos, uma essência de caráter simbólico, misteriosa, recôndita, den
tro da coisa. Se não dentro de tôdas as coisas, pelo menos em gran
de número de coisas o homem tem essa sensação.

Ê êsse engano que se dá na magia. A idéia da presen
ça, dentro da coisa, de determinadas propriedades mais ou menos d.i
vinas, de que ela é símbolo. £ daí, uma espécie de operação magica
com aquela coisa, pondo em movimento certas realidades de caráter
superior, por meio daquela coisa.

O interesse dêsse ponto consiste em explicar o fun-
cionamento da 2â cabeça. Uma interpretação exata disso facilita a
desmentir e a refutar convenientemente as coisas da magia.

Tudo leva a crer que as coisas no Paraíso eram muito
ricas em aspectos simbólicos. Êsse aspecto tornava perceptível o
valor abstrato simbolizado e a essência da coisa.

Passando para essa terra de exílio, o homem ficou
com uma idéia muito menos nítida disso, porque as coisas tem uma
espécie de transparência muito menos nítida dessa essência das coi
sas. E por causa dêsse caráter simbólico mal expresso em que se en
trevê muito mais, do que se vê nitidamente, ê que o homem tem a sen
saçao de uma imanência dentro da coisa.

AÍ compreendemos qual foi o poder de Adão ao dar a
cada coisa seu nome. 0 nome da coisa não corresponde somente ã de-
finição filosófica da mesma, nem mesmo ã fisiologia ou ã distinção
biológica dos animais, por exemplo, mas corresponde também ao sig-
nificado simbólico de cada animal. Porque tudo isso era muito níti
do, muito coerente, muito ordenado. Isso ê que era propriamente dar
um nome.

Ê natural que nessa terra de exílio o homem, tendo
passado por certos enfraquecimentos, e a natureza também sendo me-
nos brilhante do que a natureza paradisíaca, essas coisas tôdas fi

cassem mais ou menos embotadas. E daí vem ao homem essa concepção
falsa de imanência de Deus nas coisas.

A diferença que existia antes do pecado original da
natureza como nós a vemos hoje e de toda a realidade externa, deve
ria corresponder, no homem, à uma diferença também de caráter in
terno. Isto é, além da natureza ser externamente de um significado
simbólico mais claro, também internamente os sentidos do homem ti-
nham uma percepção muito mais fina das coisas, que lhe permitia pe
gar muito melhor todos esses significados simbólicos que repousam,
em grande parte, sobre matizes. Portanto, quanto mais fino o sen-
tir, maior a capacidade de matizar e portanto maior a capacidade
simbólica.

Mas o mais importante é uma determinada finura dos
sentidos interiores por onde a conjugação de todos êsses dados e a
distinção do significado simbólico dêles se fazia de um modo ainda
muito melhor.



Essa maior acuidade dos sentidos interiores e exte
riores é que talvez desse explicação ã tese de Ana Catarina Erome
rick de que o homem tinha no Paraíso um sexto sentido, do qual o
hipnotismo e a telepatia são vestígios.

Exatamente, deve-se dizer que não ê um sexto senti-
do, mas é uma finura dos sentidos, que proporcionava um como que
sexto sentido, mas de fato todos achamos que devem ser os mesmos
sentidos atuais.

Tôda coisa tem um valor simbólico e, baseada na ana
logia objetiva e real entre a coisa e determinados estados de espí
rito da alma, ela pode ter um caráter vibratório.

0 símbolo não é principalmente vibratório, mas por
detrás há um fenômeno subsidiário de caráter vibratório. Quer di-
zer, tõda coisa produz em mim uma vibração. De maneira que um sim-
bolo que desperta em mim um mundo de analogias, produz em mim tam-
bém certa vibração.

E, e claro, pelo próprio princípio da ordem do uni-
verso, que deve haver uma relação entre os dois fenômenos, de for-
ma que a vibração é condicionada nas suas modalidades, ao símbolo.
Ela produz uma sensação nervosa de caráter secundário que é, a seu
modo, o símbolo do próprio símbolo.

Isso faz com que, quando um símbolo é muito vivamen
te apanhado por mim, eu tenha, além de todo o desencadear de asso-
ciações de imagens, uma espécie de sensação vivencial, vibrante e
violenta, que me dá uma espécie de vivência da realidade apanhada
a fundo.

Todo homem concebido em pecado original tem diante
de si uma desordem. Êle pode ser comparado a uma toalha de mesa um
pouco pequena para a mesa. De maneira que, se eu cubro um lado, des
cubro o outro. Os dois pólos do homem são de um lado a razão, e do
outro essa zona da sensibilidade, zona psico-física - quase mais
física que psíquica - e que é onde as vibrações incidem.

Acontece que, quando o homem procura agir muito de
acordo com a razão, pela própria desordem que existe dentro dêle,
há uma espécie de coisa que entra meio artificialmente e meio a for
mão e a martelo, em que se impõe alguma coisa que parece meio anor
gânica e o faz chiar na outra parte de sua personalidade.

Então, diante dêsse desequilíbrio que dá tantas vê-
zes ã virtude um caráter hirto - quando ela nao ê eximiamente bem
calculada - corresponde uma ordenação na esfera da razão.

10 g06 Procura fazer a psicanálise diante disso?

Agora, o que procura fazer a psicanálise?

Ela explora a sensação de desequilíbrio que a virtu
de, nessas zonas baixas da alma, pode produzir. Explora para poder
decretar que se trata de um fenômeno que produz complexos, que ma-
chuca e que ao machucar produz complexos. Então a solução apresen-
tada por ela é puxar a toalha da mesa para o outro lado. Não e fa-
zer o homem andar de acordo com a razão, nem o conhecimento do mun
do exterior é importante, mas o importante é satisfazer essa parte
secundária da alma.

De maneira que o ideal das Forças Secretas nesse cam
po é conseguir um procedimento externo compatível com a natureza
das coisas, e que ao mesmo tempo permita ao indivíduo não ter roa-
chucaduras nessa zona da alma, e não seja tido pela sociedade como um
louco.

Então uma série de técnicas indús, teosõficas, etc. ,
nas quais o demônio intervêm muito com ilusões e que visam com ou
sem ilusões do demônio, ou com ou sem conforto da natureza, uma es
pêcie de equilíbrio e bem estar interior, cuja obtenção ê, para ê-
les, a própria finalidade da vida. A felicidade na vida não ê a con
quista da felicidade eterna, nem da verdade que se reduz a princí-
pios gerais úteis para todos os homens, mas é um elocubrar interi-
or, até muito longo, mas cujo último termo ê a obtenção para si
dessa felicidade. Hã uma espécie de egoísmo básico, fundamental,
na raiz disso, bem oposto ã caridade cristã.

J. Uma coisa pode simbolizar muitas outras

Os símbolos não são de tal maneira inequívocos que
uma coisa apenas simbolize outra coisa e somente ela. Um determina
do objeto pode simbolizar uma coisa e secundàriamente, com menos
propriedade, simbolizar aoisas até diversas.

Poderíamos dizer que talvez no Paraíso, quando se
tomasse um determinado ser e visse quais são tôdas as coisas que ê
le pode simbolizar,
a relação entre a simbolização principal e as
acessórias constituiria uma espécie de conjunto de dados para se en
tender ainda mais a fundo o ser. E um verdadeiro jôgo de analogi-
as, que dã uma espécie de compreensão mais profunda a todo signifi^
cado simbólico.

Isso poderia dar um conhecimento da coisa, como que
comentado, mais ou menos coroo uma música onde temos o "leitmotiv"
e depois todos os desdobramentos, todos os temas.

0 mesmo se daria em relação a ura determinado valor
moral abstrato; poderíamos ver todos os valores que lhe são corre-
latos, tôdas as coisas concretas que lhe são relativas, conjugá-las
e ver como cada uma delas representa a idéia em abstrato. Também te
ríamos, nesse caso, um comentário total da idéia moral abstrata.

0 universo também tem uma coisa assim. Quando consi
dêramos o universo, vemos que êle é um conjunto enorme de símbolos
harmônicos que se encaixam e que dão, em última análise, o comenta
rio de determinadas virtudes e excelências de Deus.

Os sentidos externos do homem são infalíveis em re
lação ao seu objeto próprio. Naturalmente, pode haver alguma doen-
ça de nervo. Mas desde que não haja nenhuma doença, o sentida é in
falível. Isso aumenta muito a propensão do homem de acreditar de um
modo absoluto, em tudo quanto os sentidos lhe digam.

Isso de algum modo se aplica a tudo quanto diz res-
peito ã 23 cabeça e, então, cria êsse problema que realmente é tre
mendo, que é de como a 2â cabeça toma o homem de uma forma quase in
vencível, se êle não tem uma virtude, um hábito muito sólido de des
confiar dela.

£ portanto um elemento que fortalece mais ainda es-
sa tendência do homem de se deixar guiar inteiramente pela 2- cabe
ça.

- Antes do pecado original, de fato, essa infalibili-
dade era absoluta, não só quanto ao sentido mas também quanto ã in
terpretação daquilo que o sentido diz. Isso agora não existe mais
nessa proporção. Existe apenas a tendência do homem a crer nessa in
falibilidade.

O problema da vida, comò nós o conceituamos, consis
te no seguinte; todo homem, em determinado momento de sua existên-
cia ou, era geral, desde a sua primeira infância, é colocado diante
de um grande problema que a vida lhe apresenta. £ um problema que
pode ser ate de ordem mais afetiva do que intelectiva. O que ê a
vida? Para onde vou? Quais são os tormentos a que eu estou sujeito,
ou vou estar sujeito?

E êsse problema da vida desempenha um papel impor-
tantíssimo no relacionar a 1® e 23 cabeças.

Com efeito, com facilidade o homem pode se entregar
ã 2^ cabeça, abandonando ou desconfiando muito da 1Ê. Ou pode fa-
zer o contrário, entregar-se à lâ, pondo de lado a 2-. Será o tipo
do"quadrado", segundo nossa nomenclatura. Ou até mais comumente, êie
poderá se entregar ora â 13 cabeça, ora à outra, vivendo ãs vezes
de modo"quadrado", e às vezes de modo puramente sensitivo. Mas não
estabelecendo a relação entre uma e outra, como se a 13 e a 23 ca-
beças se referissem a mundos inteiramente diferentes, que não se
relacionam entre si.

Para todos esses casos, o problema da vida é o que
propriamente força o homem a estabelecer essa relação. A pessoa po
de durante muito tempo se entregar ao sonho do quadratismo. Mas, re
aImente se ela tiver o problema da vida, se realmente a vida a pegar
e a chamar ã realidade, ela hã de reconhecer que aquilo não pode
ser assim. Hã de cair na realidade relacionando essas duas cabeças.

Isso muitas vezes passa por um fenômeno de vida es-
piritual que tem atê algo de metafísico, mas que se poderia resu-
mir na frase: "vamos deixar de bobagens". Quer dizer, durante mui_
to tempo êie se deixou levar por sonhos ou por impressões, brincou
com fogo. Mas num momento, o problema da vida o toma e cura. Essa
relação entre as duas cabeças então se estabelece de ura modo sóli-
do.

Se o homem recusa o convite do problema da vida, ê-
le ou se entregará â 13 cabeça tentando matar a 2a, ou se entrega-
rá à 23 tentando dominar, quase matar, a 1?.

A pessoa que se entrega a esses falsos dilemas, pas
sa a vida pulando de um para outro lado sem nunca resolver seu ca-
so. Porque a solução está acima e fora de qualquer das soluções a-
presentadas. Isso tem como consequência que as pessoas mais quadra
das, em certas ocasiões, em certos tipos de atividades, ou em cer-
tas passagens da vida, são as mais infantise as que se deixam mais
levar pelos sentimentos e pelas primeiras impressões.

Êste assunto da ia e 2â cabeça, no homem, é algo de
tão profundo que representa, realmente, o ponto de partida de tõda
tomada de atitude do homem diante dos problemas dessa existência.
E se êle se deixou levar por êsse falso dilema, está aí, já, o ge£
men de todas as heresias posteriores.

O problema da vida está no centro de todos os pro-
blemas criteriológicos. Uma vez que a pessoa se entrega só às abs-
trações sem tomar em conta a realidade concreta, ou só ãs sensações
e coisas concretas sem considerar os valores da alma, surgirá ne-
la o problema criteriológico, porque ela já tomou uma posição emi-
nentemente errada.

Vemos aqui que aquele princípio segundo o qual o ho
mem primeiro forma as suas idéias nos livros de filosofia e depois
vai moldar as civilizações é inteiramente falso. Tudo se forma an-
tes de mais nada na mente do homem, diante de uma tomada de posi-
ção ante a ordem do universo.

Portanto, nós que temos tantas vêzes reduzido os
problemas da sociedade aos problemas das famílias ou dos indiví-
duos que a compõem, aqui procuramos reduzir a um ponto anterior a
tudo isso, que
ê a primeira tomada de atitude do homem diante dt-
suas próprias faculdades, diante de sua própria vida.

Um problema que não chegou a ficar bem resolvido ei
tre nós, mas que convém ter presente é que por uma relação mister^
osa, e que seria necessário estudarmos melhor, quem caiu nêsse fa^
so dilema acaba tendo seus instintos inferiores desgovernados. De
forma que, de um modo ou de outro, que poderá variar ao infinito,
êle cairá num verdadeiro sensualismo que o escravizará inteiramen-
te.

0 problema da vida e a sua solução estão no centro
de todo o problema da cultura. O que é a verdadeira cultura? £ uma
cultura que conduz o homem para a resolução dêsse problema. Isso ad
mite uma variedade legitima muito grande, dadas as diferenças de
feitios de espírito da história dos povos, etc. Mas a verdadeira
cultura e a que tende para resolver esta questão.

O assunto do problema da vida tem também muita im
portância para o apostolado. Uma das medidas preliminares em todo
apostolado será despertar o problema da vida, tornar a questão mui
to candente para a pessoa. E em certas classes em que é muito difí
cil fazer apostolado é, em geral, porque o problema da vida não e-
xiste por abundância de dinheiro ou por abundância de modos de ser
inteiramente materializados. Por isso o problema da vida nessas
classes nem se pôs.

Naturalmente o problema da vida se torna também mui
to importante em tôda a pregação e em tôda pedagogia." Isto ê, deve-se sa
ber como educar a criança de modo que ela dê uma verdadeira solu-
ção ao problema da vida.

Muitas vezes na educação os pais querem como que e-
vitar que a criança seja colocada diante do problema da vida. Então
desde a mais tenra infância, apresentam o mundo como se o mal não
existisse, como se não existisse o infortúnio, nem coisas desagra-
dáveis, dando uma impressão alegre do mundo, o que ê inteiramente
errôneo.

A criança nasce sem a noção de bem e de mal, sem a
noção dos grandes infortúnios, das grandes tragédias que necessa-
riamente hã nesta vida. Qual é a solução? Vai-se criando na crian-
ça um problema da vida em têrmos inteiramente errados. A criança

Irã percebendo os inales e os infortúnios dessa vida em momentos que
não deveria perceber, ou muito antes, ou muito depois, tudo se fa-
zendo de um modo inteiramente errôneo. 0 resultado é que a pessoa
acaba dando uma falsa solução para o problema da vida. E êsse pro-
blema no homem é tão profundo que, se êle tem uma falsa solução,
tôda a vida do homem estã tendo uma falsa solução. E consertar is-
so depois ê muito difícil. Talvez sõ mesmo uma grande graça o con-
siga.

Dado que existe a Igreja, o problema da vida adqui-
riu uma forma nova e inteiramente diferente.

Antes de existir a Igreja o homem podia resolver ês
se problema apenas parcialmente. Uma vez que Ela existe, essa solu
ção é de tal modo completa que ate trás o perigo da corrupção ser
total.

Realmente, se pudéssemos fazer rapidamente um histó
rico do problema da vida, diríamos que entre os pagãos este proble
ma nunca teve uma solução plena. Na Idade Média têve. Mas embora
plenamente solucionado, os homens continuaram a ter um problema da
vida real e como que a sentir em si mesmos e a viver tôda aquela
problemática para que jã haviam encontrado solução. O grande peca-
do da Renascença foi ter feito desaparecer, ter-se esquecido do
problema da vida. De fato, de tal modo era plena a solução que a
Igreja apresentava, que os homens abusaram dessa plenitude. Ao lon
go dos tempos modernos e contemporâneos foi se agravando, até que
com a geração-nova estã se dando o problema opôsto.

Tanto se abusou da solução verdadeira que a Igreja
trazia, que aquela sensação de problema plenamente resolvido, para
a geração-nova desapareceu, ou como que desapareceu, file se sente
num caos, num mundo como que desordenado, mais ou menos como acon-
tecia nas tribus bárbaras e entre os pagãos.

CAPÍTULO V

COMO DEVE SER 0 CONHECIMENTO NORMAL DO HOMEM?

Falamos em bom senso, falamos em senso católico, fa
Íamos em "sentire cum Ecclesia", etc.

O papel destes vários sensos na vida cultural e na
vida da inteligência da alma, na vida da inteligência de um povo
e de um indivíduo é uma coisa muito importante. Entretanto tem o
grave inconveniente de corresponder a noções inexplícitas vagas e
que, por isso mesmo, acabam colocadas mais ou menos no terreno do
arbitrário. Quando se quer invocar o bom senso como argumento,o ou
tro pode dizer que êste ê o nosso bom senso e não o dêle.

O senso comum também é uma coisa que, hoje era dia,
está completamente desprestigiada por causa do desvio da opinião
pública e da depravação do senso comum.

Todo o problema dos sensos deveria ser estudado em
seu aspecto natural e em seu aspecto sobrenatural.

Deveríamos começar por dizer o que ê o bom senso na
tural. O bom senso natural é, antes de tudo, profundamente lógico,
de uma lógica inexplícita para quem o acumula.

Uma pessoa fiel ao ato-primeiro, porque é fiel ao a
to-primeiro tem muito vivos os princípios primeiros da razão. Mas
os tem vivos, não de um modo consciente, definido, mas de um modo
inexplícito. Vivos como podem estar vivos os princípios da lógica
na cabeça de uma pessoa que poderá morrer sem ser capaz de explici^
tã-los, mas que nem por isso deixa de possuí-los multo real, dinâ-
mica e proveitosamente.

Sabedoria popular

Esses princípios são utilizados na sabedoria popu-
lar. Por exemplo, por pessoas que tem diante de si determinados pro
blemas aos quais os princípios se aplicam com muita evidência e tam
bém se resolvem com muita evidência e segurança, e que constituem
uma espécie de tesouro de uma lógica inexplícita, que floresce em
máximas fragmentárias, cujo sabor de bom senso sente-se profunda-
mente pela evidência das coisas, pela consonância da coisa com a
mente humana e porque se percebe que ê um pensamento que põe em or
dem uma série de outras coisas. E que é, portanto, uma espécie de
principio, de elemento definido de uma sabedoria mais indefinida.
Mas definido ainda não em têrmos abstratos, mas em termos parabõli^
cos, análogos, que jogam com figuras concretas que tem dentro de
si a verdadeira sabedoria. Aquilo que parece um conjunto de verda-
des desconexas, no consciente, corresponde a tõda uma contextura e
a tôda uma sistematização subconsciente, que faz com que a pessoa
se haverá com muito bom senso, mesmo em matéria em que êsses prin-
cípios não afloram.

A afloração dêsses princípios da um certo vigor a tu
do quanto está no subconsciente, o que constitui um verdadeiro sis
tema de sabedoria.

Hã aí uma espécie de exploração ou de utilização de
verdades evidentes. Mas hã também uma espécie de elaboração pela
qual o número de verdades evidentes cresce pelo fato de se concate
narem umas com as outras. Por isso as evidências do espírito popu-
lar também se tornam mais numerosas e formam uma sabedoria.

Nosso Senhor utilizou a Sabedoria Popular

Se apelarmos para o modo de Nosso Senhor pregar, ve
mos que essa sabedoria foi a sabedoria pela qual, ensinando aos
judeus, mas ensinando aos homens de todos os tempos, Nosso Senhor
apelou no Evangelho.

As mais altas noções de moral, as mais altas noções
de teologia, Nosso Senhor arranjava um jeito de revestir em ima-
gens simples, mas que eram idôneas para que os ouvintes compreen-
dessem muito além da imagem. Por exemplo, a parábola do Bom Pastor
era algo do mais trivial em sua vida cotidiana; Nosso Senhor tomou
-a para fazer entender as verdades mais altas da Providência Divi-
na, e fêz entender mesmo.

Faz parte dessa espécie de atitude de alma dessas
populações assim, ser capaz de um certo jogo de analogia. Por essa
analogia elas vislumbram, num terreno muito mais alto, ao qual não
conseguem atingir explícitamente, tôda uma serie de coisas que não
saberiam vislumbrar a não ser assim. Mas vislumbram mesmo, enten-
dem mesmo e vivem mesmo. Hã aí uma espécie de chão sadio da sabedo
ria, a respeito do qual caberiam várias observações.

Hã abstrações aí?

Há aí uma verdadeira abstração. E se não houvesse,
não seria possível ordenar o pensamento. A parábola do Bom Pastor,
pelo fato de ser parábola, não sendo inteiramente abstrata jã tem
algo de ahatratlvo. No caso concreto conta a historia de um homem
tipo. O tipo jã contém algo de abstrativo. Hã uma verdadeira mar-
cha para a abstração â maneira própria, não â maneira comum. Isso
é uma coisa rauito preciosa, sem a qual a abstração propriamente ci.
entíflca nem se compreenderia.

Temos falado muito na conversio ad phantasmata. Os
fantasmas são ordenados para servirem â abstração científica, quan
do são elaborados pela raison raisonable (1) de maneira a jã fica-
rem meio manuseáveis, meio adaptáveis à abstração científica.

É nesse estado que a abstração científica colhe o
fantasma e faz dele o seu exemplo, o seu ponto da repouso, o seu
instrumento de trabalho. Isto pode ser comparado àquelas grutas que
tem estalactites e estalagmites: os dois pontos acabam se encontran
do. Assim também a raison raisonante e a raison raisonable se oscu
lam exatamente no ponto da conversio ad phantasmata, fechando o cír
lo da operação intelectual.

A principal base da verdadeira cultura popular
ê * posse da Sabedoria e não a alfabetização

TÔda a verdadeira cultura popular não tem como base
a alfabetização, mas a posse da sabedoria. Um dos inconvenientes da
alfabetização indiscernida é convidar para um sistema abstrativo a
quêles que não têm o conjunto de maturidade necessária para a rai-

HOTA Os termos "raison raisonante" e "raison raisonable” são a-
qui empregados para indicar respectivamante os modos de operar da
18 e 2S cabeças.

son raisonante. £ abrir as portas da raison raisonante para quem
deveria ficar ainda nos paraísos da raison raisonable. Isso não
quer dizer que se confine para um nível baixo a população, a menos
que se queira dizer que era nível baixo a atmosfera espiritual, in
telectual e moral das parábolas do Evangelho, que se situavam in-
teiramente nêsse nível. Para um pretensioso e cretino que achasse
uma coisa dessas, realmente é um trabalho anti-popular querer que
a população adquira antes de tudo a raison raisonable.

A Sabedoria Popular em faoe das elites

Em função das elites, parece-me que o povo tem um
papel muito importante a êsse respeito. Como a própria elite entre
ga-se ã raison raisonante, ela facilmente se desvia, perde o humus
dêsse contacto da sabedoria popular, que está para ela como Sancho
Pança para Dom Quixote, e que a mantém num estado de equilíbrio,
estado êste indispensável para a própria elite. AÍ está o contribu
to de uma vida de sabedoria popular para o homem criterioso.

Acredito que, se Leibnitz ou Descartes tivessem vi-
vido em aldeias muito quentes de raison raisonable, e num convívio
efetivo com a gente da aldeia, muita cretinice teria sido poupada
ao mundo. Êste ê um ponto em que é preciso insistir muito.

Dizendo que é essa a contribuição que o povo presta
para o trabalho das elites, digo que essa sabedoria popular e essa
sabedoria da raison raisonable, é uma vigia da raison raisonante,
nos termos que explicarei em seguida.

Não quero dizer que as elites não devem ter, elas
mesmas, raison raisonable, o que seria um êrro grave. Mesmo ai elas
devem ser exemplo e mestras, inspirando-se na sabedoria popular,
confirmando sua sabedoria com o terra-terra popular. Por isso acho
que o nobre que vive no campo é um exemplo de equilíbrio, porque
sendo nobre tem também aquele contacto com o campo que fixa a rai-
son raisonable, de um modo extraordinário. O nobre deve ter isso em
grau eminente, mas o contacto com o povo fortalece isso e lhe faci
lita a missão de ser excelente nesse ponto.

Equilíbrio entre a raison raisonante e a
raison ri iòonable

Nas elites, no homem instruído, qual é o papel res-
pectivo da raison raisonante e da raison raisonable? O homem culto
que tem raison raisonable muito forte, de evidências imediatas, vai
construir seu castelo de raison raisonante, mas conferindo a tôda
hora com a raison raisonable. Quando não confere, ele emite um si-
nal de alarme e pára, não indo adiante e não aceitando a coisa en-
quanto não confere e recebe a chancela da raison raisonable. A rai
son raisonable é uma espécie de segurança para ele, como um avia-
dor que vôa no céu, mas que se guia pelo mapa da terra e que vai o
lhando os montes e rios para saber que caminho deve seguir no prÕ-
prio céu, confere as indicações de seus aparelhos de vôo super-téc
nicos com o mapa que vai vendo embaixo. Isso dã ao uso do mapa uma
segurança especial.

Nisto há um reconhecimento do pecado original. Se o
homem não fôsse falível, não precisaria disso. Ê exatamente nessa
humildade e nêsse reconhecimento implícito do pecado original vis-
to nos seus efeitos na mente humana que entra algo que irrita a
pretensão dos filosofastros que vieram depois da Escolástica, que
queriam uma coisa majestosa, feita apenas de abstrações elegantes,
sem descerem para o terra-terra popular. O filosofo afastado do
bom senso popular, na ordem da filosofia, era bem a imagem do no-
bre cortado da vida popular. Como o nobre preparava uma elegância
muito refinada, mas sem o lastro do terra-terra, assim o filósofo
preparava uma filosofia refinada, mas sem o bom senso popular, o
orador sacro e o teólogo preparavam uma teologia e uma oratória sa
eras que também não se inspiravam nos temas, nos problemas e per fu
mes da realidade viva, concreta e miúda, de cada dia.

Daí veio um elemento para a anorganicidade da socie
dade, anorganicidade e debilidade das elites, destrutibilidade das
mesmas. Igualitarismo, Revolução, tudo isso deve ser visto como u-
ma primeira ruptura com êsse concreto, miúdo, popular, terra-terra,
sem o qual nada tem verdadeira seiva vital.

Essas considerações que subordinam as operações in-
telectuais às operações do bom senso, consideradas como uma cordi-
lheira de vivências sàbiamente concatenadas e dirigidas pela sabe-
doria, explicam porque a filosofia tomista deve ser considerada co
mo filosofia do bom senso.

Explicitação importante

Também explicam mais: tudo isto que estamos expri-
mindo, tanto quanto nos conste se faz pela primeira vez, dando uma
cidadania e uma capacidade de defender-se em têrmos humanos contra
as loucuras da raison raisonante, como ate aqui isso não era redu-
tível a palavras e argumentação. Q resultado lógico foi que a rai-
son raisonante entupiu a boca da raison raisonable com discursos
brilhantes que não convenciam, daí advindo uma decadência da cultu
ra. E o reduzir isto a têrmos utilizáveis, o definir e exprimir is
to, e uma operação de primeira ordem para que o homem, fiel ã rai-
son raisonable, encontre os motivos de sua fidelidade e se fixe nê
les. Para que êle tenha o que objetar contra a raison raisonante.

O lado criteriológico da coisa me parece explicar
muito bem porque a escola ultramontana do século passado - e Joseph
de Maistre ê um exemplo brilhante disso - apresentava muito mais
um homem que se apoiava em ambas as razões, do que um puro teórico
brilhante, como o foram os dos séculos anteriores, fabricantes de
utopias e, como até certo ponto continuaram a ser os socialistas.
£ a linha da raison raisonante em seus delírios, que jã não conhe-
ce nem a Fé, nem o pecado original.

Passemos ao senso católico.

O senso católico é a expressão de uma fidelidade ao
19 ato e de uma estrutura metafísica bem feita, incorporada a uma
espécie de bom senso da Fé. Depois, tôdas as elucubrações da Fé são
conferidas com isso.

Ê a essa primeira parte que chamamos o senso catõLi
co; é o bom senso, versando a respeito dos assuntos da Fé, com o au
xílio da graça e operando com essas verdades evidentes e primei-
ras, servindo de controle para as outras.

Bom senso, senso católico são, não a mesma coisa,
mas são coisas anãlogas em planos diferentes, no plano natural e no
plano sobrenatural, correspondendo a um mesmo operar do espírito hu
mano nos dois pontos. Isto ê uma coisa que convêm fixar com rigor.

No homem culto, êsse operar misto do bom senso e da
razão vai acumulando uma série de quadros, de visões, de panoramas,
etc. de uso individual, que vão constituir uma espécie de firmamen
to de verdades certas,em função das quais o homem vai construindo
outras e vai orientando sua vida. Isto é todo o tesouro da sabedo-
ria de um homem.

O homem culto, jã não ê constituído apenas pelo bom
senso, mas por uma soma do melhor produto da raison raisonable fo_r
mando uma espécie de conjunto arquitetônico em tôrno da sabedoria,
que é o grande tesouro do homem, na medida em que não é só conheci^
do, mas também amado, e operando no homem a união transformante (1).

Aqui vemos o processo humano por mais um aspecto,
como parte do ato 19 e em duas categorias mentais diferentes, do ho
mem culto e do homem ignorante, em duas ordens de coisas, na nature
za e na graça.

Queria usar um pouco a palavra senso para mostrar o
que ela tem de legítimo.

Por quê isto, no consenso geral, chama-se senso?

£ porque a evidência com que se opera tem algo de
sensível. 0 evidente como que se sente. É só quando isto é feito
num operar de evidência que se pode chamar um senso.

Quando a construção da raison raisonante e solida-
mente baseada na raison raisonable, eu diria enxertada, somadas as
seivas de uma e outra raison, a raison raisonante participa em al-
go da sensibilidade da raison raisonable. Hã assim uma espécie de
senso mais alto, que ê o senso da verdade do homem, que se choca
com algo que lhe é oposto. Quando o homem constrói um tal panora-

NOTA 1: Explicação da união transformante ãs pãgs. 147 e ss.

ma, pela conjugação das duas razões, forma uma vista arquitetônica
de conjunto. Esta vista, pela sua simplicidade e unidade, reimerge
de novo no terreno da raison raisonable.

A este título constitui, na outra'ponta do losango
uma volta a dados simples e uma confirmação de tais dados. Nisto
participa de nôvo do senso.

Eu amo muito esta afirmação porque, para mim, e por
onde a Sabedoria, que é sempre arquitetônica, é sempre uma visão
de conjunto, por mais que se eleve nos ares, reconduz-nos depois
a
morosamente ao regaço das evidências. Aí temos uma forma de certe-
za de alma, que verdadeiramente e capaz de dar origem a uma Civili^
zação. Sem esta certeza de alma, não existe uma Civilização plena.
Nao ê preciso acentuar quanto a sanidade e a coerência desse pro-
cesso dão vigor ã Fé Católica.

Geração-nova

Estas coisas um geração-nova não as tem, porque ele
ê criado sem raison raisonable. Vive no mundo da fantasia arbitrá-
ria da raison raisonante, e obrigado ao falso dilema de escolher en
tre uma coisa e outra. Gostaria de dizer também que, ser educado
num mundo puramente técnico e sem nenhum contacto com a natureza,
concorre indiscutivelmente para isto.

Estávamos estudando a metafísica, procurávamos o a£
pecto metafísico de tôdas as coisas criadas, a procura do absoluto
como se faz, etc., a partir daquele ato-primeiro que já vimos.

No ato 19 o indivíduo conhece a sua própria contin-
gência, porque ao mesmo tempo em que vê que e, êle tem nisso uma
noção de ser, vê no que êle
não é. AÍ vem uma idéia, em virtude do
princípio de contradição e do princípio axiolõgico de ser absolu-
to, que se projeta para fora dêle, e é a primeira noção que êle tem
de Deus.

Essa operação que se faz realmente assim, entretan-

to não se faz filosoficamente assim. Hã um processo humano que vai
através da metafísica viva.

Metafísica viva ê o seguinte:o homem nota nos seres
que êle conhece e em si mesmo, uma série de atributos; êle percebe
a contingência ou limitação dêsses atributos. E ê nessa contingên-
cia e limitação dos atributos que êle percebe a contingência e li-
mitação do ser. Isto é muito razoável porque o homem não tem uma
noção direta do ser, mas tem uma noção dos atributos do ser.

Êle sõ pode ver de um modo vivo uma metafísica da
contingência do ser, através da contingência dos predicados do ser.

Começa um processo por onde êle vê, por exemplo, um
azul. Êle nota que aquele azul ê belo, mas nota que o azul poderia
ser mais belo. Êle tende a imaginar ou a procurar algum azul mais
belo que aquêle.

Hã uma marcha que é do conhecimento do primeiro a
zul que ê belo, para o azul que ê perfeito. Uma idéia de que deve
haver um azul realizável nesta terra e que se procura nos vários a
zuis que se conhece e que ê uma idéia do azul perfeito.A partir do
momento em que êle conheceu um azul que reputa perfeito, ou ao me-
nos concebeu de ura modo negativo como perfeito, êle estã na ponta
do real e começa a passar para o irreal, fi uma árvore imaginaria,
um azul imaginário, um panorama imaginário, um ente imaginário,
que ê tão excelente que nem existe na realidade, e que é muito me-
nos uma nostalgia do Paraíso Terrestre do que uma apetência do Pa-
raíso.

Aí se situa todo o domínio do fabulosoe do feérico.
O homem procura realizar palácios fabulosos, coisas feéricas, não
por um deleite vil, mas para realizar uma certa idéia de Deus, que
está no seu espírito e que êle ama como o cego bom amava a beleza.

A partir dêsse momento, o homem estã com o espírito
pronto para a consideração do Paraíso Celeste, onde existem, de fa
to, coisas materiais, onde de fato existem coisas criadas, mas tais
coisas tem uma beleza que ê prototípica, perfeita dentro de uma bl
tola da Criação. Essa beleza.dá de modo muito límpido e admirável
a idéia das excelências de Deus.

Entre a coisa perfeita e o absoluto que e Deus, en-
tre a perfeição criada ea perfeição incriada, hã o summum de proxi-
midade que pode haver entre o infinito e o finito. Ê a partir des-
sa concepção que a alma se torna apta a compreender alguma coisa
em Deus.

Alguém dirá que tudo isso ê extremamente grosseiro
porque a visão beatífica supera tudo isso. Isso é querer material!
zar Deus. Digo a essa pessoa que essa é uma concepção muito gros-
seira do abstrato.

De fato o homem vê Deus face a face, e nisto êie ti
ra uma felicidade infinita. Digamos o que quisermos da visão beatí
fica. Deus em Sua Sabedoria, julgou indispensável para a plena fe-
licidade dos eleitos, isto ê, para o pleno conhecimento d'£le, pois
a felicidade dos eleitos está no conhecimento d'£le, julgou indis-
pensável o Paraíso Celeste. Pela consideração das formas arquetipi
cas e perfeitas das coisas, o indivíduo vai mais facilmente elevar
-se até Deus. Portanto ê legítimo, nesta terra, que é ela mesma u-
ma imagem deformada do Paraíso Celeste, que o homem vã preparando
para si visões do Paraíso, ao mesmo tempo que, por melo do cultivo
da Fê, do estudo da Revelação, etc., prepara sua alma para a visão
beatífica, que Deus lhe dará no céu.

Este c o papel da cultura, o papel da civilização.

Papel que ê da marcha do bom para o melhor, do melhor para o óti-
mo, do ótimo para o perfeito, do perfeito para uma ordem perfeita
imaginável,não realizável nesta Terra, e na qual o homem vai encon
trar uma espécie de consideração especial de Deus.

Isto explica bem a visão monárquica e aristocrática
da organização social na Idade Média. Tomando em consideração a im
possibilidade de elevar todas as coisas e todos os homens a êsse
i
deal, procurava-se realizar perfeições. O palácio do rei cora a côr
te era para eles uma imagem do que será o Paraíso que ê o gáudio de

todo o povo da Terra.

Isto naquela época era a elaboração de uma categoria
mental que era considerada o mais alto serviço social que possa ha
ver.

O que restou dêste fenômeno explica também o júbilo
das multidões quando vêem entrar o Papa em sua pompa, quando vêem
passar a Rainha da Inglaterra em seu esplendor.

Para os medievais, um Rei ou um Papa que não fizes-
se isso pecaria gravemente contra seus deveres.

Por detrás disso estã a concepção de um Deus Absolu
to e transcendente, que o homem procura por meio de esforços que
saem constantemente dos padrões comuns. Vem daí também o entusias-
mo pelo grande homem que não é o homem massa, mas que ê o oposto da
massa e que a superou, e que se admira porque é uma imagem viva de
Deus Nosso Senhor, ou uma imagem ontológica pelas excelências onto
lógicas de sua alma, ou imagem moral,

£ do alto dêsse ponto que nasce a vertente oposta,
que nasce o regime igualitário. É essa consideração que Deus é ima
nente, que não deve ser procurado nêsses sonhos, nessas ditas uto-
pias transcendentes. Então o ideal da felicidade tem que se reali-
zar nesta Terra, com exclusiva consideração das coisas desta Terra
e não dos bens parasidíacos futuros, dos quais temos aqui uma pre-
libação (1). Então o prazer não e ver o Rei passar e aplaudí —lo,
nem é ver um grande orador que ninguém consegue igualar, mas o pra
zer é só ter uma geladeira, um rádio, uma televisão.E ser todo-mun
do, sumir-se na massa, desaparecer nela, planificar o homem-massa.
Esta concentração do prazer exclusivamente em coisas materiais é o
mundo da gnose, do deus imanente.

Temos assim as duas vertentes da cultura.

NOTA 1: Sobre a tendência paradisíaca ver também "Baldeação Ideolo
gica Inadvertida e Dialogo", Cap. TV, 2, I. - Plinío Corrêa de Olí
vei ra .

£ preciso fazer unta restrição a cultura monárquica
ou à cultura tradicional como existiu antes da Revolução Francesa.

Mil aspectos da Revolução Francesa tem um aspecto
da ruptura da humanidade com essa vida do espírito. O' entrar nas Tu
lherias e quebrar todos os objetos preciosos ê quebrar o mundo de
símbolos que falavam num Deus transcendente, e começar a querer v^L
ver no culto do deus imanente. É um rio que muda de curso e que se
que para outro lado.

Mas algo disso jã havia no Ancien Regime.

Na cultura medieval todos os aspectos de beleza che

gavam a seu ápice quando acabavam tendo algo de insondável, de ex-
traordinário, que falava numa ordem de beleza irreal que deve exis
rir para o além.

Cada cor de um daqueles vitrais era uma côr não in-

teiramente esgotãvel pelo ôlho humano, quando o sol passava pelos
vitrais e batia na lage do chão, dizer que era um mundo de jóias
não é verdade, ê um mundo de jóias de outra Terra, de outro mundo,
é uma espécie de sonho de uma outra coisa que deve existir no além
e que estã sendo projetada ali. S um sonho que tem um aspecto de
realidade, neste sentido o sonho é uma idéia do Paraíso (1).

O pessoal do Ancien Regime queria acabar com isso

acabar com todos os aspectos de irrealidade que convidam para o a-
lém e fazer um mundo bonito com os aspectos da realidade do aquém.
£ uma espécie de utopia aristocrática,pôr a felicidade nesta Terra
com tudo que ê explicável e terreno, com nada nêle que fale de ou-
tro mundo para mostrar que esse mundo é muito bonito.

Como êles tinham ainda um lampejo da coisa anteri-

or, acabaram pondo em Versalhes alguma coisa que lembrava a ordem
incriada.

Mas certos americanos tiram de suas coisas isso com

NOTA 1: Vide "Baldeação IdeulÕgica Inadvertida e Dialogo",Cap. IV,
2”, 1 - PCO.

pletamente, e os russos chegam ao inimaginável dentro disso.

Hã todo um vazio que vem da renúncia a essa ordem i
deal. Compreende-se aqui o papel das utopias na Revolução. O homem
tem sempre um ideal de felicidade dentro de si. Quando êle tem es-
sa procura do absoluto, realmente não faz tanta questão da felici-
dade material terrena. Nesse sentido Marx tinha certa razão era di-
zer que era um ópio, não seria um ópio mas a consolação do homem.

Mas quando essa marcha para o absoluto não tem êsse
sentido ê preciso construir uma utopia na terra. Então vem oMorus,
o Campanella. Lendo-se o Morus, tôda a felicidade consiste na pos-
se tranquila dos bens terrenos como êles são. Nenhum pensamento de
algo que fôsse como não ê, de uma ordem humana que não seria esta
e para a qual o homem sentisse uma apetência. £ isso que essas uto
pias tem de profundamente ateu, de socialista, etc.

Colateralmente, dever-se-ia estabelecer um acrésci-
mo a essa doutrina que trata da procura do absoluto: através da abs
tração chegar ao absoluto,

A abstração como filosoficamente se concebe, é uma
das etapas para uma das vias do absoluto. Mas quando o indivíduo fi^
gura sensivelmente o perfeito, êle veste de carne o abstrato. A i-
dêia de casa, que abrange tanto o palãcio quanto a casa, evidente-
mente não se esgota na idéia de palãcio. Mas o fato e que o palã-
cio é a realização da casa com tudo quanto a casa pode e deve ter,
com todos os seus acidentes. Nesse sentido tem algo de protótipo,
enquanto o protótipo tem algo de abstrativo.

Hã duas vias que se completam, uma pela abstração,
outra pela realização desse ideal. Apoiando-se numa e noutra, e ti
rando de cada uma algo que lhe ê próprio, uma sabedoria que lhe é
própria e que a outra não dá, o homem tem inteiramente o que lhe ê
dado ter como homem. Isto seria um aditivo preciso.

Temos assim a idéia de uma metafísica viva: e essa
apetência contínua da perfeição, imagem do absoluto, portanto ape-
tência para o absoluto. Isto num espírito de gôzo, de adoração, de
respeito, com um módico prazer para o homem.

Metafísica viva ê a apetência do absoluto, numa or-
dem ideal hierárquica, monárquica e aristocrática sobretudo (1).

A metafísica não pode ser feita a partir de um pro-
cesso mental interrompido na abstração e que não chega a seu têrmo
que é a conversio ad phantasmata. É tomando os dados do processo
mental no seu todo, isto é, tomando a abstração, hã mais algo que à
abstração necessàriamente se acrescenta para que o entender do ho-
mem seja completo. Ê tomando a intelecçao completa do objeto da me
tafísica que ê o ser, que a metafísica deve operar. O resto é fa-
zer uma metafísica que seria para anjos, e não para o homem cujo
conhecimento não consiste apenas na abstração.

O estudo da metafísica deve ser completado por su-
cessivas converaiones ad phantasmatas, uma espécie de pista cons-
tantemente relacionada com a pista abstrativa para que dê ponto de
partida a uma sabedoria viva.

Essa chamada metafísica viva joga com símbolos, e o
símbolo ê uma outra via para o conhecimento metafísico. £ uma via
própria ao homem porque toma os sentidos e através desse conheci-
mento direto sensível também leva à algo de metafísico.

Tomando-se séries de símbolos, elas têm sempre como
têrmo valores metafísicos que são aquilo que chamamos absoluto quan
do falamos em nossa expressão "procura do absoluto". Não digo que
cada símbolo tenha um conteúdo diretamente metafísico, mas já tem
um conteúdo com algo de incipientemente metafísico. Porque quando

NOTA. lj Os termos ordem monárquica e aristocrática são empregados
aqui para designar princípios teoricos. Nao se referem a regimes po
1ítico-sociais. Quanto a êstes, adotamos o pensamento tradicional
da Igreja, expresso pelo Papa Leao XIII ("Au milieu des Sollicitu-
des" e "Diuturnum") e por Sao Tomas de Aquino (Suma Teol. lã IIã£,
q.105, ^.L, c.; e seu comentário sobre "A Po 1ftica" de Aristõte1es ,
Livro II, Lição VII), de que ha em tese três formas legítimas de go
vêrno: a monarquia, a aristocracia e a democracia.

ura objeto simboliza um homem êle simboliza algo do que hã de meta-
físico no homem, do homem visto metafIsicamente. Hã densidades me-
tafísicas diferentes nos vários símbolos, conforme proximamente ê-
lee simbolizam uma pessoa, ou simbolizam algo de diretamente abso-
luto. Também, conforme o ângulo de visão por onde são vistos, etc.

Mas a simbologia ê uma apreensão da metafísica.

Se essas considerações são falsas, é falso que deve
haver culto externo. Se o homem pode fazer metafísica apenas na pis
ta abstrativa, êle ã capaz de rezar sem culto externo. E tôdas as
razões que tornam legítimo o culto externo, indicam nêle um modo
pessoal de ser, em virtude de êle ser animal racional, que exigem
dêle algo que seja sensível na ordem metafísica, como na ordem da
piedade. Daí a importância da simbologia no culto externo.

O culto externo está cheio de símbolos para tornar
presente ao homem, e auxilia-lo na oração por meio de imagens con-
cretas, uma porção de conceitos abstratos que êle põe em movimento
em sua oração. Assim como a Igreja não fêz sua piedade para puros
espíritos, mas para homens, é preciso haver uma cultura que esteja
toda em ordem ã metafísica e cujo ápice seja a metafísica viva.

PROCESSO HUMA40

PARTE III

PROCESSO DO ÓDIO E DO AMOR

Capitulo I - O Processo do Amor

Capítulo II - O Processo do õdio ou do Vício

-oOo-

CAPÍTULO I

0 PROCESSO DO AMOR

O homem, nas profundas raízes de seu ser tem, desde
a primeira infância e nos primeiros movimentos em que êle percebe
a existência de outras pessoas, a evidência que clama dentro dêle,
dizendo que êle não se basta a si próprio. Que êle precisa de algu
ma coisa a mais para bastar-se. E é isso que nõs propriamente cha-
mamos de contingência.

Essa noção de insuficiência,de si própria é uma no-
ção que faz com que a criança comece a tomar uma atitude em rela-
ção às coisas que lhe faltam.

Mas ela tem também uma percepção que ê tôda confu-
sa, tôda ela feita no próprio ato, de que hã uma determinada ordem
que rege as relações dela. Que rege as relações entre ela e aquilo
que lhe falta.

Ela pode ter a percepção de que seu ser não aceita
aquela ordem. Que aquela ordem ê dolorosa para o seu ser e que ela
quer uma ordem diferente daquela. Então, no momento de pegar a bo-
la, no momento de pegar o chocalho, vem para ela o problema: "Não
é o momento de pegar aquilo agora, não é ordenado fazer isto, mas
eu quero". Então, se ela esperneia, se ela estertora, ela está fa-
zendo um ato pelo qual ela coloca o absoluto em si. Ela é a regra
e a medida de todas as coisas.

Se ela, pelo contrário, aceita mansamente aquelas
contingências e age conforme a ordem, ela coloca o seu ponto de gra
vidade num ponto fora dela, acompanhado do princípio de que ela se
deve dobrar àquela ordem. E então existe um absoluto extrínseco ao
qual ela se dobra. Ela então passa a se considerar como uma peça
dessa ordem, que tem como razão de ser, funcionar a serviço dessa
ordem, e impondo-se a si mesma os sacrifícios necessários para que
essa ordem funcione. Isso era nome da verdade, em nome da ordem.

Não é, portanto, diretamente Deus que entra em li-
nha de conta, mas é aquilo que tem o lugar de Deua. Aquilo que ê u
ma aurora da idéia de Deus na cabeça dela. Não é' ainda o aol, mas
é una luz de sol que dã a ela a idéia de Deus e do absoluto que es
tã por detrás.

Então uma posição é: o meu bem estã em participar
dessa ordem e eu farei qualquer sacrifício para servir a esta or-
dem que ê mais do que eu. A outra ê: essa ordem me incomoda e tor-
tura, eu preciso destruí-la para poder ter uma vida tranquila, o
meu bem não estã em ninguém fora de mih, mas em mim mesmo.

B• Sstes atos se cristalizam e orientam a vida

Essas primeiras atitudes da criança, ficam gravadas
numa zona da alma que é a região onde se formam os hábitos. Aconte
ce muito de a criança tomar uma atitude diante da ordem e ela pas-
sar para esta região, cristalizando-se em um habito que dará a ori
entação para sua vida inteira.

Hã crianças que tem muita lucidez e responsabilida-
de em face dos atos que fazem.

A criança tem no início uma visão de um ponto que
contem era si, jã intuitivamente, todos os outros pontos da vida. É
portanto uma primeira compreensão do bem e do mal. E isso ê o que
justifica o que certos Santos dizem de crianças que se encontram
no inferno. £ por causa exataraente de negações muito profundas que
as crianças fazem.

A alma, quando começa a despertar para a vida, fica
colocada diante de um conjunto de verdades, de bens que constitu-
em para ela a verdade e o bem. A maior parte das almas tem uma cer
ta compatibilidade com as verdades e com as virtudes, mas tem uma
antipatia profunda cora a verdade e com o bem vistos no seu conjun-
to. Para não aceitar a verdade e o bem na sua plenitude, a alma
choca os seus transcendentais (1) e os deforma. Na maior parte dos
casos não se trata de uma recusa completa, mas de recusas e aceita
ções intermediárias. A partir dessa posição primeira êsse estado
de indefinição pode tomar a vida inteira de uma pessoa.

Deve-se notar ainda que, na criança, a possibilida-
de de escolha entre o bem e o mal ê, em certo sentido, muito mais
vasta do que a de um adulto. Na medida em que a criança vai esco-
lhendo o mal, por exemplo, todo o seu espírito vai se orientando
numa determinada linha. Em consequência, as escolhas que vêm depois
já serão dentro daquela bitola. O mesmo acontecendo em relação ao
bera. O adulto, portanto, jã encontra predisposições tão fortes no
seu espírito, que a sua escolha, embora em princípio possa ter uma
variação sem limites, na ordem concreta das coisas êie é tão soli-
citado para uma escolha dentro daquela bitola que, normalmente, a
sua escolha se realizará ali.

Naturalmente, isso não e absoluto. Porque seria ne-
gar a liberdade humana. Entramos, contudo, num jôgo de probabilida
des muito forte, porque essas solicitações cada vez mais,prendem
e amarram o homem. Dentro dessas possibilidades temos no princí-
pio, um jôgo de variações que são infinitas, e vão diminuindo ao
longo da vida e se fixa na morte.

Mas ê indispensável notar que isso não é irreversí-
vel. Uma conversão, por exemplo, ê uma volta atrás, um rompimento
dêsse círculo vicioso era que a pessoa se colocou.

Logo que a noção de bem e de mal vai chegando ao co
nhecimento da criança, ela pode ter culpa. O princípio que a Igre-
ja afirma de que os pecados mortais só se dão aos 7 anos, não con-
tradiz a tese. Embora a criança jã tenha uma noção de beme de mal,
essa noção não ê suficientemente clara, consciente, lícita para que
o pecado possa ser mortal. Mas pecados veniais e mesmo pecados mor
tais numa criança de cabeça um pouco precoce, se pode admitir. E

NOTA Sobre o que são os transcendentais ver págs . 145 e 146.

tanto se pode que se permite, em certos casos, a Comunhão para
crianças de menor idade em função do desenvolvimento mental da
criânça.

Na vida espiritual, quando a criança toma a resolu-
ção genérica de fazer o bem e evitar o mal, hã dois modos pelos
quais essa resolução ajuda a criança: uma ê a via simbólica ou ana
lõgica, e outra a via lógica.

Na raiz desta distinção devemos mostrar que é muito
diverso passar do abstrato para o concreto e ver no concreto a coi
sa abstrata em estado vivo, do que passar de um princípio para as
conclusões dêsse princípio. £ na distinção dessas duas coisas que
se baseia □ que segue..

Diríamos que a criança adota o princípio de que o
mal deve ser evitado e o bem praticado, por um senso que ê um con-
junto de boas disposições de alma onde entram a educação, uma cer-
ta retidão natural, um certo equilíbrio, enfim, mil dados que en-
tram e que contribuem para a criança, ao ver a coisa boa, perceber
que aquilo é o bem do qual ela teve uma determinada noção mais ou
menos abstrata. Em concreto aquilo é o bem, e ela não faz outra coi^
sa senão vendo ali o bem, praticar em concreto a sua resolução. Is
to não é prdprlamente um raciocínio, mas é traduzir para o concre-
to conceitos vistos em abstrato.

Para que a criança seja capaz de ver isto em concre
to, ela aplica alguns processos que eu posso indicar. Ura dêles é a
experiência. A medida que a criança vai crescendo, mas jã desde mui
to pequena, ela vai tendo uma especie de experiência, por onde vai
conhecendo melhor as coisas e sendo mais capaz de ver ali o bem e
o mal. Nisto se pode dizer que a criança, desde os albores da ra-
zão, pode ir crescendo em graça e santidade, como diz o Evangelho
de Nosso Senhor.

Ao lado da experiência existe um processo analógico
e um processo simbólico, que enriquecem a experiência, lustram-na,
e não são distintos dela. A criança tem uma certa facilidade com o
jôgo das correlações, das analogias, de perceber como uma situa-
ção se parece com a outra. E como o bem existente numa situação ê
um bem que se repete em outra situação', ou o mal se repete em ou-
tra situação. £ uma coisa que não é um processo anti - lógico, não
ê um silogismo que está na base disso, mas, a rigor, um silogismo
bem feito poderia vir justificar isso, embora a pessoa, o mais das
vezes, não faça um silogismo para isso.

A mesma coisa dá-se em relação ao simbolismo. Cer-
tas coisas simbolizam muito bem outras, e a criança percebe bem e^
sa relação simbólica. Através disso ela também enriquece seu campo
de conhecimento concreto do bem e do mal, dos quais ela teve deteir
minada noção em abstrato.

O papel da educação aí é muito grande. Uma educação
que reporte a todo momento tôdas as coisas 3 idéia de bem e de mal
ajudará muito a criança a ter vivo o princípio de que ela deve ser
vir o bem, e evitar o mal.

Êsses processos simbólicos e analógicos não são pro
cessos anti-lógicos, porque a pessoa, nêles aplicando o raciocí-
nio, logo encontraria suas justificativas. O que não quer dizer que
a pessoa tenha empregado métoto dedutivo dentro do assunto.

O que caracteriza os processos analógicos e simbóli
cos ê não serem inteiramente conscientes. E para serem completos 2
les nem pedem para ser conscientes. Nem seria completamente equili
brado se um homem fôsse fazendo isso de um modo inteiramente cons-
ciente a todo momento. Um bom funcionamento mental não pede isso.

Quando a pessoa tem muito boas disposições, não en-
contra dificuldades, em geral, para fazer esse sistema bem. Mas hã
alguns pontos em que tôda pessoa é trincada pelo pecado original
e onde êsse processo se enrosca, ou por contradições ou por
ul i
recimentos. AÍ o raciocínio intervém para resolver as anomalias do
enrascado do processo. Entra então o processo abstrativo. Entra so
bretudo o papel da meditação e do raciocínio completamente consci-

ente .

Vemos então que o raciocínio, por sua natureza, po-
de não ser consciente. Mas, em tese, sua perfeição lucra em consci
entizar-se, enquanto que nas outras operações analógicas e simbõM
cas, essa espécie de aperfeiçoamento extrínsecoé perfeitamente dis
pensãvel.

K. Como vai nascendo para a criança a noção de um
Deus pessoal, atrás da noção de bem e de mal?

Hã duas maneiras pelas quais uma criança pode ir per
sonificando o bem. Uma é quando a criança vai notando rudimentos
pessoais que existem na regra geral de que o bem deve ser feito e
o mal evitado. Outra é quando ela vai conhecendo várias pessoas e
vai personificando nelas certas virtudes. Depois, com as virtudes
que ela conheceu, irá compondo uma idéia genérica do bem.

Estas são as duas maneiras diversas de personifica-
ção quanto ao objeto próximo. A primeira maneira tem como objeto
próximo e direto, logo de uma vez, vislumbrar os rudimentos da pes^
soa de Deus, nêste bem genérico enunciado pela regra de que o bem
deve ser feito e o mal evitado. Outra é fazer viver a regra em pes
soas concretas, nos seus vários princípios, para depois constituir
uma noção abstrata superior.

Então, antes e acima de tudo existe, na criança, u-
ma primeira idéia genérica de bem, em função da qual ela concebe os
vários bens. Depois ela como que se esquece dessa idéia genérica
de bem. Porque essas idéias primeiras e genéricas são concebidas,
mas são logo esquecidas e continuam a viver na câmara obscura.E de
pois a pessoa vai trabalhando no subconsciente essa noção esqueci-
da. Ela vai "à la recherche d'une notion perdue", através do conhe
cimento de várias pessoas para constituir de nôvo aquela noção abs
trata.

São dois processos que se encontram como os dois
braços da ogiva. Podemos dizer, entretanto, que uma criança que te
nha sido fiel logo nos primeiros lampejos, como Santa Teresinha,
por exempla, que ela não passa por esse fenómeno de esquecimento,
embora ela não possa dar uma idéia inteiramente explícita. Por ca a
sa disso, nela todo senso moral é muito mais pleno, muito mais com
pleto, do que numa pessoa que caminha apenas na segunda via porque
o senso moral perdeu-se e vive apenas no subconsciente.

L. Como a criança intui Deus por trás das criaturas?

Assim como uma criança tem uns vislumbres por onde
vê que as mais perfeitas figuras de cêra não são pessoas vivas, mas
são outra coisa - e isso se dã por uma sabedoria que a criança pos
sui intuitivamente - assim também, por um mecanismo análogo, ao
ver as pessoas ela percebe que há uma outra pessoa de outro porte,
de outro estofo, transcendente, que paira acima de tudo isso.

Pode-se dizer que a criança intui isso da seguinte
maneira. 0 princípio de que o bem deve ser feito e o mal evitado,
o esplendor do bem, a criança intui como presente a tudo, como pre
sente até nela mesma, como princípio omnipotente. E é um valor mo-
ral que existe aliunde com propriedades tão próprias que não cabem
em nenhuma das categorias que ela queira enunciar. Isso não leva
diretamente à idéia de Deus, mas a rudimentos da idéia de Deus. A
pessoa pode chegar a explicitar isso só no fim da vida. Humanamen-
te falando, poderia ate morrer sem ter explicitado, se Deus não lhe
revelasse. Mas é êsse o caminho pelo qual a pessoa, saindo do dese
nho para o relevo, e do relevo para a estátua, pode chegar até Deus.

A, Distinção entre amor instintivo e racional

Antes de estudarmos o egoísmo, o amor interessado e
o desinteressado, precisamos fazer uma distinção entre o amor ins-
tintivo e racional no homem.

Hã uma espécie de instinto de conservação, que não
e o amor que o homem tem em comum com os outros sêres. Êste instin
to resulta de um império que Deus deu ao ser para que exista.E vem
acompanhado de uma tendência no ser para defender a sua própria e-
xistência. Nesse sentido a formiga, por exemplo, tem instinto de
conservação. Vemos que êsse amor instintivo para a própria conser-
vação tem algo com um problema que queremos estudar, isto ê, o do
amor interessado e desinteressado, mas vemos também que êle não e£
tá no âmago de nosso problema. Por isso vamos descartá-lo.

O objeto de nosso estudo seria mais o ato de inteLi
gência pelo qual o homem compreende que deve amar a si próprio, que
deve amar os seres extrínsecos a si, e que, sobretudo, deve amar a
Deus.
a

Então formulamos o problema: Nêsse ato que o homem
faz, em que medida entra o amor interessado e o desinteressado?

Antes de tudo: o que ê o amor interessado e desinte
ressado?

Hã um modo falso de pÔr o problema que parece inso-
lúvel, e é o seguinte. O amor interessado é aquele em que, de algum
modo, entra algo de mim. Amor desinteressado é o em que, de nenhum
modo, entra o amor de mim.

í> 'i '
Filosoficamente falando, o amor e sempre uma rela-
ção que aproxima dois sêres e que, portanto,ê sempre uma adequação
* _ ~ f \1
de dois seres. Então nao pode ter um termo so, que e Deus. Mas tem
que ter dois termos dos quais um necessariamente sou eu.

Portanto, o mais desinteressado dos amores tem tam-
bém um amor a mim mesmo dentro dêle. Se o amor desinteressado com-
porta,como um dos dois termos, uma dileção de mim mesmo, pergunto
como nasce êsse amor desinteressado?                  " 
«í-ívtj

• • u

Para resolver a questão devo considerar a natureza
de meu ser. Nessa natureza considero essência e acidentes. Sou le-
vado a ter um amor para com a minha própria essência, porque caso
contrário eu atê deixaria de existir. Não posso deixar de ter êsse
amor porque está ligadò â minha própria condição de ser. Êsse amor
liga-se ao princípio de que todo ser ama o seu próprio ser pelo ia
to de que êie ê. Se êie pudesse não amar, dar-se-ia uma explosão
mil vêzes pior do que a desintegração do átomo.          .

a

Além disso eu tenho um amor aos meus acidentes bons.
E êsse amor, o que ê? Os meus acidentes estão para a minha essên-
cia como o fim está para o meio. A minha essência só é digna de e-
xistir na medida em que ela se complete com os acidentes que lhe
são próprios. Daí a bondade do amor aos meus acidentes bons. Por
contraste, podemos entender bem com o exemplo do Evangelho, do sal
que não salga. A essência do sal que não salga é boa, mas porque ê
le não salga deve ser posto fora. A figueira estéril também, cuja
essência permanece intacta, deve ser cortada porque não realiza os
seus próprios acidentes. Vemos então que o acidente tem uma razão
de fim para com a essência.

Quando vou amar a minha essência compreendo duas cod.
sas. Minha essência no que ela tem de mais íntimo, não ê senão o
fruto, o produto de uma outra essência imensamente mais densa, e
imensamente mais ela mesma. De maneira que, sem negar a infinita
transcendência de Deus, eu poderia dizer que Deus é mais eu, do que
eu mesmo. E como se a minha fotografia fôsse capaz de me conhecer.
Ela me amaria mais do que a si mesma, reconhecendo que eu sou mais
ela do que ela mesma. Não quer dizer que eu tenha uma relação onto
lógica com minha fotografia, minha fotografia não é homem, mas pe-
lo fato de ela ser a imagem de um homem, ela ama mais o homem do
que a si própria. E aqui temos a relação do amor interessado e do
amor desinteressado.

Temos também outra via pela qual o amor interessado
chega a Deus. Conheço Deus e sei que Êle ê a personificação dêsses
acidentes que devo amar. Então, pelo amor dêsses acidentes, acabo
amando a Deus mais do que a mim mesmo.

Quando Santa Teresa dizia a Nosso Senhor;"Ainda que
não houvesse Céu eu Te amaria, e ainda que não houvesse inferno, Te
temeria", ela fazia um ato de altíssimo e pleníssimo amor de sua
própria essência. Êsse ato não tem outra consistência que o amor ã
própria essência divina.

Como entraria o verdadeiro amor interessado? Se mi-
nha fotografia me conhecesse, ela notaria que em certo sentido a
plenitude dela sou eu. Mas, de outro lado, ela veria que tem uma
distinção em relação a mim. E, enquanto distinta de mim, ela pode
ter uns interesses que nunca sejam contrários aos meus, mas que de
algum modo não são os meus. Nesse sentido eu posso ter um amor in-
teressado de Deus quando considero Deus enquanto me dá felicidade,
bem estar, etc., e que de um certo modo é uma coisa distinta do a-
mor de Deus, embora no fundo esteja embebida no amor de Deus. Por-
que não posso ter um reto amor de mim que não seja, ao mesmo tempo,
amor de Deus.

Procuraremos compreender o sentimento do amor desin
teressado em situações nas quais o homem serve abnegadamente a ou-
tro, por ver naquele outro um erqui-êle-mesmo.

Por exemplo, vemos a teoria católica de que tôda su
perioridade deve gerar amor e obediência. Como ê essa teoria? Um
homem superior ao outro é de alguma maneira uma imagem de Deus pa-
ra o outro. Quando essa superioridade
é na mesma linha, a relação
fica muito clara. Eu mencionei aqui a despedida do Rei Carlos X,da
França, de seus fiéis no pãteo do castelo de Maintenon. Quando êle
ia se despedindo, um soldado se destacou da fila e ficou olhando pa
ra êle. Êle, então, indagou o que o soldado desejava. "Senhor, que
eu vos admire mais um pouco" - respondeu o soldado, file via no Rei
uma realização arqui-nobre, esplêndida e sublime, de uma porção de
coisas de que êle era a miniatura. E por isto êle amava o Rei mais
do que a si próprio, porque amava mais os seus predicados do que
a si próprio.

Essa teoria do amor desinteressado tem na raiz uma
concepção de humildade. £ o homem que compreende a sua própria li-
mitação e tem, portanto, êsse amor desmedido, necessariamente des-
medido e devidamente desmedido, para aquele que representa literal
mente aquela perfeição que êle deve adorar. E adorar é exatamente
iseo. Aqui estã dada a definição de amor e de adoração. Adorar ê
reconhecer este valor supremo em determinada coisa.

Daqui partiríamos para uma concepção do egoísmo. O
que vem a ser o egoísmo?

Hã uma incompatibilidade entre algumas coisas que o
homem acha gostoso fazer e tôdas as coisas maravilhosas que êle vê.
Essa incompatibilidade faz com que o homem seja obrigado a reduzir,
a todo momento e violentamente, certa zona da alma dêle que não é
atingível por êsses valores de que falamos, file é obrigado a disci
plinar essa zona em função das coisas que a outra parte da alma vê.
De maneira que a alma fica bipartida em zonas. £ como uma casa de
duas faces, na qual o sol do absoluto bate inteiramente. Ha outra
zona em que êste sol não bate, e que ê a segunda cabeça. Nesta zo-
na não penetra o sol do absoluto e se estabelece uma como que dia-
lética própria e um conjunto de coisas próprio. Por um mecanismo de
licado o homem acaba, por alguns lados, tendo a sensaçÔo de que o
"eu" dêle está ali, e não estã na zona onde bate o absoluto. De ma
neira que nasce nêle uma espécie de idéia falsa de que o absoluto
não é o seu "arqui-eu", mas é coisa distinta absolutamente dêle. O
ego para êle mora nessa zona onde nunca entra o raio do sol do ab-
soluto. Ê por isso que hã a necessidade do homem, a todo momento,
estar intervindo nessa zona e colocando-a em ordem.

Essa posição errada dada pela segunda cabeça c o pon
to de partida do egoísmo. Quando o homem tem uma idéia desbotada
do absoluto, êle se sente muito mais a si mesmo, na parte onde não
bate o sol do absoluto. De maneira que Deus, em vez de ser para ê-
le um outro eu mesmo, Deus ê outro. E é um outro, que acaba sendo
até certo ponto um inimigo. Um inimigo, sim. Porque,a partir do mo
mento em que Êle é outro e um outro que exige, que importuna, é en
tão um inimigo.

Dessa má alteridade com Deus acaba nascendo que, co
mo a pessoa sõ se sente ela mesma,nessa parte da casa, acaba nas-
cendo uma posição criteriolõgica falsa em que a verdade começa a
aparecer ao homem como sendo aquilo que êle sente nessa parte escu
ra da casa. O resto é a fé, ou seja, uma coisa difícil e dura que
o arranca dêsse antro onde êle mora de boa vontade. De maneira que
a própria fé é também uma inimiga. E vem então uma atitude de ci-
são que, a meu ver é típica do protestantismo. O protestantismo co
meça pelo homem que nega êsse absoluto, que mora nessa zona escura
e que aí estabelece a sua morada. Eu creio que, para o católico, a
segunda cabeça é um protestante que mora dentro dêle.

Vimos que hã uma zona da alma que não é por si mes-
ma atingida pelo amor ao absoluto. Esta zona é onde se desenrolam
as paixões. Assim, por exemplo, a alma pode notar tôda a beleza da
temperança, mas isso não faz absolutamente com que ela não seja to
cada pelo movimento de gula. E tôda beleza que possa haver na tem-
perança não ê suficiente para eliminar o apetite desordenado que
tem, por exemplo, o desejo exagerado de beber. Então a alma se vê
solicitada entre duas forças opostas: uma é a fõrça que leva para
o absoluto; outra é a força que leva para não tomar era consideração
a noção de absoluto, por mais alta que seja, mas toma um aspecto
de absoluto em si. E isso que São Paulo chama de lei da carne opos
ta ã lei do espírito.

A parte da alma da lei da carne é independente de
qualquer raciocínio, independente de qualquer coisa de ordem inte-
lectual, e que se apresenta como uma atração e como uma coisa ca-
paz de justificar-se em si. Ê curioso que para essa parte da alma,
a satisfação das paixões funciona em si como um absoluto. De manei
ra tal que, por exemplo, para o homem sensual o deleite ê um fato.
E êsse fato é avassalador, brutal, que acaba constituindo, sob cer
to ângulo, a razão de ser de sua vida, a única coisa que torna a
vida aproveitável.

De maneira que ficam dois absolutos em contradição.
Embora a alma veja coisas muito elevadas, sublimes, extraordinári-
as, ela tem uma parte que lhe diz que, de outro lado estã uma coi-
sa que ã um valor em si,e dentro da qual ê preciso engolfar-se in-
teiraraente. Há essa espécie de caricatura sombria, irracional mas
tirânica, do absoluto, do lado das paixões.

Assim se entende como uma pessoa possa se entregar
com frenesi aos prazeres, como se aquilo justificasse a sua exis-
tência. E mesmo diante do quadro da desgraça e da morte ela procu-
ra justificar-se: "É verdade que vou morrer e que antes de morrer
vou ficar cego, pobre, etc., mas pelo menos eu aproximei os meus lã
bios da taça e bebi...” Isto funciona como um absoluto em slnesmo.
é uma caricatura do absoluto funcionando em oposição ao absoluto
verdadeiro.

Nessa zona da alma é preciso que a pessoa desenvol-
va um esforço enorme para quebrar essa tendência e sujeitar essa zo
na ao império da razão. O que essa zona tem de eminentemente carac
terIstico ê que o amor que ela desenvolve nos leva para dentro de
nós mesmos. O outro amor nos leva para fora. Quando digo que quero
o prazer, digo que o quero para mim, porque eu sou eu.

Hã, portanto, por detrás do prazer puramente dos sen
tidos, um absoluto associado. A certa altura, a pessoa que se en-
trega a essa via cometerá um pecado de espírito de achar explícita
mente que ela vive para si mesma e não para Deus. Hã, portanto, em
todo pecado dêsse tipo uma zona de egoísmo que Éo gozo, o deleite,

mas hã jã, também, uma pontinha de gnose.

Quando a pessoa percebe,que caiu no pecado de egoís

mo, ela começa a tender para um pecado mais profundo. Isto se dã
quando ela procura justificar o seu primeiro pecado, construindo u
ma espécie de metafísica de si mesma. Ela então procura provar que
o que fez é o direito, que o certo é o fechar-se sôbre si mesma.

Êsse é o pecado e êsse é o modo pelo qual aqueles
que são levados pelos sentidos, chegam à plenitude do egoísmo.

Ha outra via para se chegar ao mesmo ponto, que é a
vertente do orgulho. É a vertente do homem que se sente a si pró-
prio, sente as suas qualidades, seus equipamentos, e tem uma certa
espécie de sentir e de dominar os seus próprios equipamentos. En-
tão, em relação a Deus êle fica na posição de um pequeno senhor
feudal que tem aquela embriaguez de existir e de ser senhor feudal.
E quer isolar-se do Rei e dos suseranos, para ter o prazer de mano
brar sozinho os recursos que recebeu. De onde então uma posição de
revolta contra Deus, quase dizendo isso: "A mim me basta xsso que
Deus não me tirará: o existir. Eu existo e dfile eu não peço nada.
Prefiro todos os tormentos, todos os horrores, mas prefiro ser eu,
do que ser um ser relativo a alguém, amando alguém e extrovertido
para alguém".

Podemos, então, dizer que essas são duas vias do e-
goísmo e de sua justificação.

O amor ao próximo e ãs criaturas não êuma coisa tão

distinta do amor de Deus quanto a fraseologia comum,a respeito da
moral, costuma invocar. Na fraseologia comum, eu amo a Deus e de-
pois, através de uma série de métodos e de andaimes eu consigo, la
boriosamente, passar o amor de Deus para os indivíduos, conseguin-
do então amar os indivíduos, em si mesmo detestáveis. Há, nêsse mo
do de ver, todo um esforço para amar os indivíduos.

Eu acho que quem ama o ser, os indivíduos e as coi

sas por onde elas legitimamente devem ser amadas, que sabe que Deus
existe e que tudo deve reportar-se a Deus, amando as criaturas jã
pratica um ato de amor a Deus. Porque os atos de amor a Deus e ãs
criaturas não são tão distintos quanto habitualmente se diz.

Eu considero isso muito importante para todo um con
junto de concepções nossas, que são o oposto de algumas concepções
revolucionárias do amor de Deus. Por exemplo, estou diante dêsse en
feite decorativo que está no jardim. Se eu o amar pelo que êle tem
de bom, e se o amar com um amor desinteressado que se deve ter às
coisas, se eu o amar também com um amor interessado legítimo, sem
deixar entrar o mau egoísmo, eu estarei amando nêle o que êle re-
presenta de Deus. Porque amar uma coisa dessas por si sõ é uma tal
estupidez que, se não representasse a Deus, eu não poderia ter ês-
se ato de amor. Em última análise eu amo isso porque sei que é uma
representação de Deus e o que eu amo disso é o que ê de Deus - que
é a infinitude disso. E êsse amor, já atinge Deus, através do enfei
" te do jardim. .

De onde decorre exatamante que tudo quanto é beleza,
- tudo quanto é grandeza, e até tudo quanto ê riqueza, pode ajudar po
derosamente o homem na virtude, desde que tenha o reto amor dessas
coisas.                                                                       ' _. * ; ■        .

.         -                                                                                  •- ' u ..

é claro que um homem que não é reto faz disso um mau
uso e isso será para êle um elemento de perdição. Mas o que não é
ocasião de perdição para um homem que não é reto? Para o homem re-
to, contudo, essas coisas elevam. Nesse sentido eu sustento que o
luxo reto, o requinte reto, a grandeza reta, elevam a alma do ho-
mem reto. Porque no amor dessas coisas vem implícito e subjacente,
já, um ato de amor de Deus.            ’

A luz primordial põe-se para nós da seguinte manei-
ra. são Tomás de Aquino diz que todas as almas humanas em si são i
guais e que as diferenças que hã entre elas vêm dos corpos. Mas pa-
ra compreendermos todas as dificuldades concretas que existem nas
almas, é preciso tomar na maior consideração também a diferença de
regime de vida sobrenatural nas almas. Quer dizer, além das desi-
gualdades provenientes dos corpos, existe também o fato de que Deus
chama as almas para histórias espirituais diferentes, patenteando-
lhes a Sua atenção, o Seu amor, através da ação sobrenatural, atra
vês da ação da inteligência, de circunstâncias especiais, providen
ciais e de mil outros fatores, de maneira tal que cada alma tem um
tipo especial de santidade que ela é chamada a realizar. Essa san-
tidade não é o contrário das outras santidades, nem é diferente das
outras, pois a santidade cristã é uma só, mas o modo de realização
dessa santidade e que varia de acôrdo com as almas.

Se estabelecermos êste princípio, vemos que cada al^
ma tem uma individualidade por onde ela tem a tendência a compreen
der melhor determinadas perfeições de Deus que correspondem mais ao
próprio ser dela. E, por isso, ela tem mais tendência a considerar
certos absolutos, tem mais tendência para compreender certos aspec
tos da Religião revelada, tudo dentro da linha que nela mais apete
ce,pelo seu movimento natural, originário do físico, espiritual, e
do sobrenatural também. Há, portanto, uma apetência da alma para
um determinado ponto.

Agora vem a inteligência. Na ordem do conhecimento
dos absolutos, por causa dessa apetência, ela tem sua atenção par-
ticularmente chamada para determinados absolutos metafísicos. Vem
a graça e revela ao homem a Fê Católica. Dentro da Fe Católica o a
mor do homem se acende também especialmente para determinadas ver-
dades .

Então temos uma espécie de linha de afinidade entre
os absolutos metafísicos e as verdades da Fe Católica que, em últi^
ma análise, resultam - como ja vimos - num ponto único e simples.
E é a êsse ponto supremo que o homem, ou a alma, tende com tõdas
as suas forças, mais do que para qualquer outro ponto.

Então, o que vem a ser a luz primordial? Ela pode

ser vista de dois lados; objetiva e subjetivamente.

Objetivamente, a luz primordial ê o conjunto de per
feições de Deus, que o homem conhece com o auxílio da graça e da Re
velação e também com o exame da natureza, e que corresponde ao pon
to mais ardente da aplicação de sua inteligência e do seu amor.

Subjetivamente falando, a luz primordial ê uma ape-
tência, para cada homem, personalíssima. A luz primordial subjeti-
va é verdadeira luz, porque além de exercer a função visual - com
parãvel à do "ôlho" - ê também ela que ilumina as coisas, tornando
-as compreensíveis para aquela pessoa. Ela e necessária para que o
dinamismo hierarquizado das melhores apetências da pessoa e de suas
melhores compreensões, encontre satisfação.

De maneira que a maior e melhor curiosidade inteleç
tual, a maior e a melhor apetência da vontade aplicam-se com todas
as suas forças, quando o homem é virtuoso, para o conhecimento da
luz primordial objetiva.

£ fato que hã uma determinada perfeição de Deus que,
em última e suprem!ssima instância, é objeto do amor especialmente
terno, ardente e intenso do homem.

Mas acontece que, quando o homem ama as perfeições
de Deus, não se pode dizer que êle ama em Deus apenas uma perfei-
ção. Todas as perfeições de Deus são aspectos de uma mesma perfei-
ção. O indivíduo deve amar, portanto, tÔdas as outras, senão êle
não ama a perfeição primordial. E a perfeição de Deus que esta na
luz primordial e sõ o pórtico para o homem entrar depois no amor de
tôdas as perfeições de Deus. Isso é lógico, porque se eu amo uma
determinada perfeição, eu amo, por um sistema de constelação, as vã
rias outras que são como que corolários ou aspectos próximos des-
s a .

E depois mais outras e mais outras, à maneira de
grupos de constelações hierarquizadas entre si. Assim, concretamen
te pode-se. dar que uma pessoa que não tenha ainda trazido ao cons-
ciente a sua luz primordial inteira, ela note em si várias apetên-
cias que, ao mesmo tempo, podem parecer um tanto díspares entre si
e que se ligam por um fio de ouro, que estã no subconsciente e que
se trata de desenterrar para saber qual ê o ponto uno do qual es-
ses fios procedem. Então aí se encontrará a espécie de coisa supre
ina que a pessoa procura. Mas a luz primordial revelada acaba sendo
uma, embora brilhe em aspectos secundários bem diversos, em certa
fase do desenvolvimento da pessoa.

Gostaria de precisar o que se entende por energia vi
tal. Todo homem, tomando a palavra vitalidade no sentido corrente,
tem um modo de vitalidade que lhe é próprio e que se nota no fei-
tio de seu espírito e de sua inteligência, nas habilidades que tem,
no modo de ele ser agradável, amável, de êle ser desagradável, des
cortês, de êle conversar, de andar, enfim, há em tudo uma certa u-
nidade que é caracterizada por uma espécie de ritmo, ou de vivaci-
dade, ou de vitalidade, que lhe e próprio.

Nesse sentido cada homem ê inconfundível e não tem
nenhuma identidade com qualquer outro homem, por maiores que sejam
as semelhanças.

Essa vitalidade é que é afim com a luz primordial.
Toda vitalidade estã para a luz primordial como o violino estã pa-
ra o violinista. O violinista tem talento para tocar o violino,e o
violino ê um instrumento para ser tocado pelo violinista. Se não hou
vesse essa adaptação entre a vitalidade do homem e a sua luz pri-
mordial, não haveria a possibilidade de uma unidade e de una coe-
rência interna dentro dêle.

Um ponto importante é a pessoa governar sua vitali-
dade para ser capaz de recolher-se, de pensar e de abstrair. £ por
aí que vem a dificuldade de abstração do geração-nova, que é todo
um turbilhão de vitalidade desordenada.

Hã uma relação entre a vitalidade do homem com os
defeitos que o pecado original pôs nêle, e a vida como ela é, como
vida de exílio, de lutas e dificuldades. O homem alcança o equilí-
brio quando êle, honesta e positivamente, aceita a realidade extcr
na como ela ê, com os seus percalços, dificuldades, com seus lados
feios, com aquilo que êle não compreende bem. Dessa maneira êle
forma um quadro objetivo do mundo externo e se situa dentro dele.

Mas hã uma posição que ê a evasão diante da reali-
dade do mundo como êle ê. E isso leva a criar duas espécies de mun
dos irreais.

Primeiro o mundo do sonho, que produz megaloma-
nias (1) .

Depois, o hábito da alma de, dentro da realidade, sõ
considerar alguns aspectos e não considerar outros, acabando embo-
tada e insensível para alguns aspectos da realidade. Isso é também
viver na irrealidade.

O efeito disso sobre a vitalidade é fazer a pessoa
viver numa espécie de mundo artificial em que só vibra e sõ sente
de um jeito. Sõ se coloca de um determinado modo e a alma que toma
ria uma harmonia e uma força muito grande se reagisse contra todo
o inundo externo, fica como um sujeito que só desenvolve muito obra
ço esquerdo, porque ê a única ordem de realidade que conhece, e a-
trofia-se em todos os outros setores. É um defeito que vejo muito
em latinos e não vejo no alemão, quando não dã para kantista.O kan
tismo é êsse defeito opôsto, no alemão.

C. As vertentes do hoiaem

Porque é tôda uma série de coisas que caminham atraí
das por uma espécie de mesma lei da gravidade, para o mesmo ponto
central.

Poder-se-ia dizer prisma, porque constitui realmen-
te um prisma, no sentido de que é um ângulo por onde a luz primor-
dlã1 ê vista.

As vertentes não cuidam propriamente do objeto da
luz primordial - o objeto da luz primordial ê sempre uma virtude -

NOTA 1: Ver Cambem circular: "A Hegalice" - PCO.

mas cuidam do objeto no qual esta virtude é considerada pelo homem.
Por exemplo: o homem pode ter por luz primordial a fortaleza, mas
pode ter a preferência de considerar essa luz primordial em deter-
minada categoria de objetos e não em outra.

Quais são os objetos nos quais o homem habitualmen-
te considera a sua luz primordial?

Estabelecemos uma distinção: ou o objeto ê sobrena-
tural ou é natural.

O objeto sobrenatural (vertente religiosa)ê Deus en
quanto relevante, isto ê, o Deus da Fé, da Revelação, e não o Deus
da filosofia. Ê também tudo quanto diz respeito ã vida sobrenatu-
ral, ã graça, ao Céu, etc.

A esta vertente contrapoe-se uma outra, que são os
objetos naturais.

Quer dizer, □ homem pode considerar sua Luz primor-
dial de preferencia na esfera político-social, enquanto êle consi-
dera as sociedades, e mais especialmente enquanto considera a ma-
cro-sociedade - a sociedade em seu conjunto - ou as micro-socieda-
des intermediárias, familiar, etc. Pode ter uma vertente para con-
siderar a luz primordial na psicologia, isto ê, tomando um homem e
uma alma particularmente considerados. AÍ entra tudo quanto diz re£
peito ã pedagogia, psicologia, a certos tipos de direção espiritu-
al, etc.

O homem pode ter um feitio que se compraz, de prefe
rência, na consideração do absoluto enquanto realizado ou na meta-
física (filósofo) ou nas considerações de caráter artístico: belas
artes, mecânica, etc.

Usualmente não se considera essa classificação com-
pletamente, mas somente a religiosa, político-social e psicológi-
ca, porque jã contêm as outras.

Hoje em dia, e de hã muito tempo para cá, considera
"se Deus muito mais como causa final do universo ,do que como causa
exemplar. E nisto estã um êrro, porque no conceber Deus apenas en-
quanto causa final, hã como que um modo incompleto do homem amar a
Deus. A natureza humana pede que Deus seja conhecido também enquan
to causa exemplar. O ato de amor humano não é completo se não tomar
isto em consideração. Ficar em Deus somente enquanto causa final é
algo fundamentalmente errado. Ê preciso ligar as duas coisas (1).

Hã determinadas pessoas que correspondem à vertente
religiosa. Mas consideramos aqui vertente religiosa num sentido es
pecial da palavra, quer dizer, considerando o homem enquanto êle
considera o universo e não tomando diretamente na problemática a Re
velação e o sobrenatural.

A vertente religiosa ã aquela que tem uma noção mui
to viva de tudo quanto o universo tem de fugaz, de transitório, de
perecível, de tudo portanto que a Criação tem de fraco.

* E parte dessa consideração para as considerações
mais altas a respeito de Deus na linha metafísica,
É uma pessoa
que sobe ã ordem das realidades superiores e então considera Deus
como causa final do universo sobretudo, e tôdas as coisas
cooo pa£
sageiras, transitórias, meros degraus para chegar a Deus.

As duas outras vertentes partem de um prisma diver-
so, que é Deus considerado enquanto causa exemplar do universo eme
nos como causa final.

Nessa vertente o indivíduo tem o que chamaríamos uma

NOTA Sobre causa exemplar, ver: "A Estética do Universo e a Ce»
sagração ã Nossa Senhora" e "Espírito Revolucionário e Contra-H&yW
lucionãrio" - Plínio Corrêa de Oliveira.

"weltanschaung", quer dizer, uma concepção total do universo exter
no. file aprofunda o estudo da Criação no que ela tem de positivo,
no seu lado belo, bom, etc. A própria consideração do mal pode le-
var a pessoa, na vertente político-social, para um lado muito dife
rente da vertente religiosa.

Na vertente psicológica a pessoa não considera tan
to o mundo externo, mas considera a si mesma no seu mundo interno,
tendo Deus como causa exemplar. Estuda sua própria alma, as rela-
ções que ela tem com Deus e com o universo.

Qual o modo pelo qual o homem forma as suas convic
ções?

Segundo a concepção de Descartes, o homem que estã
ã procura da verdade pode ser comparado ao cego que não tem visão
e que vai às apalpadelas num quarto cheio de móveis, à procura de
um determinado objeto que êle deseja. Essa concepção ê radicalmen-
te oposta à concepção católica a respeito do assunto.

Segundo a verdadeira concepção católica, a coisa ê
outra. Hã determinadas verdades que são acessíveis a todo espírito,
desde que êle vem a êsse mundo. As coisas âs quais êle tem acesso,
são em última análise prolongamentos dos transcendentais. Por exem
pio, que o ser não pode ser e não ser ao mesmo tempo, que o bem de
ve ser feito e o mal evitado, etc. Essas verdades sao acessíveis a
todos os espíritos e o espírito reto progride por meio de uma com-
penetração cada vez mais profunda dessas verdades. Essa compenetra
ção lhe dã uma luz maior no conhecer a verdade que êle jã possui.
E, â medida que essa compenetração ê maior, o seu espírito se tor-
na mais vigoroso em tirar a là, 2ê, 4ê e enêsima dedução dêsse pon
to fundamental e dessa verdade absoluta que êle possui. E isso pe-
lo princípio também evidente de que
o espírito humano ê tanto mais
intrépido no tirar as conclusões quanto mais êle estã persuadido de
que as premissas são verdadeiras
. Ele ê tanto mais inseguro, quan-
to menos está persuadido disso.

Ora, as grandes premissas de todos os raciocínios
que o homem faz são os transcendentais e os absolutos. De maneira
que quando isso se enfraquece no espírito do homem, o espírito de
dúvida e o espirito de incerteza se introduz nele. E, a partir dês
se ponto, êie realmente não pode fazer outra coisa senão procurar
a verdade cartesiana.

Segundo o modo católico de conceber as coisas, isso
dã-se como descrevi, porque tõdas as verdades, ã maneira de conclu
são, estão contidas nas verdades primeiras, o que produz a posse,
por via de raciocínio legítimo, de tõda a verdade.

Vamos imaginar um homem que tenha, -de um absoluto
inicial, deduzido uma série dcwconsequências e ramificações. Em de
terminado momento dã-se, na alma dele, aquilo que pode ser reputa-
do o desastre dos desastres da vida espirituais êie perde o amor
a
determinados absolutos. A partir do momento em que êsse fato se
deu, o que acontece?

De um lado as ramificações deixam de crescer e a
sua doutrina como que se estagna, porque êie se torna incapaz
de f a
zer frutificar aquilo.

De outro lado começa uma espécie de refluxo. Quer
dizer, as extremidades de seu raciocínio, do arvoredo de seu racio
cínio,vão minguando e murchando e, em muitas, a vida fica apenas u
ma espécie de restos de seiva que ficam presos naquela extremida —
de, mas o todo vai minguando.

Então a alma está preparada para a verdadeira apos-
tasia, que não será a apostasia que lhe virá do fato de um racioc£
nio que vera de fora para dentro, mas serã a apostasia que lhe virã
do perecimento de tõdas as suas energias interiores.

Numa segunda grande etapa, então, os raciocínioa que
vêm de fora, à maneira de machado que bate na raiz, poderão abater
a árvore.

Mas isso não vem logo, nem os inimigos da ordem fa-
zem isso logo. Qual □ processo que os inimigos da ordem seguem?

Para apressar o deperecimento êles agem de dois mo-
dos, Primeiro eles agem sõbre a própria raiz, ou sõbre o próprio
tronco, fazendo com que depereça o mais possível. Como é que se
faz isso? É quando se introduz no homem uma certa moleza por onde
êle não quer atingir o verdadeiro fim. Uma certa moleza por onde
êle não quer mais voltar-se para as coisas que sao a verdade. E1p
volta-se para si, para seus gozos, para seus deleites, para as suas
compotas. Então, naturalmente, introduz-se no homem um vício, e ês
se vicio o levará gradualmente até a apostasia.

Ao mesmo tempo em que isso se passa, as Fõrças Secre
tas como que vão soprando veneno do extremo da galharia para o tron
co. Por exemplo, fazendo, por meio de sofisminhas, caírem as con-
clusões extremas. Mas uma pessoa nessas condições tem ainda um cer
to amor àquilo que sustenta. E, pelo amor que tem ao que sustenta,
essa pessoa de fato não gosta de ser colocada de frente ã hipótese
da apostasia. E por causa disso, se é colocada muito claramente nes
sa perspectiva, é capaz de uma reação.

A reação da pessoa diante da hipótese da apostasia
reacende nela o absoluto. E, reacendendo nela o absoluto, a reação
pode provocar uma espécie de revigoramento de tudo.

Então as Fõrças Secretas são muito cuidadosas no eo
prar os extremos da árvore, como são muito cuidadosas no embombar
êsse fenômeno de deperecimento, porque pode haver em determinada
momento uma campainha que toque. E nessa campainha que toca ê tôda
a obra do mal que cai, e a obra do bem que floresce de novo.

Ha um outro conjunto de figuras que podem exprimir
bem um aspecto muito importante para nossos assuntos.

Diz respeito ã fôrça de sustentação das premissas
firmes. Vamos supor, por exemplo, um raciocínio esteiado numa pre-
missa inteiramente firme. A certeza que se tem do ponto de partia
comunica-se a todo o reato. E pode ser comparada a uma torre bem
construída em que todos os elementos são perpendiculares ou verti-
cais ao aolo e por isso repousa bem sôbre si mesma. Mas vamos ima-
ginar uma coisa â maneira da Torre de Pisa; à medida em que a Tor-
re de Pisa fôsse ficando mais alta, ela se tornaria mais susceptí-
vel de cair, porque o pêso' dos extremos iria aumentando mais. As
sim também uma certeza fraca nas premissas gera um pouquinho de in
certeza nas primeiras conclusões. A incerteza cresce ã medida em
que o castelo das conclusões vai-se encompridando. Chega a um mo-
mento extremo que cai tudo. O homem jã não tem certeza.

Então nõs poderíamos comparar o edifício da certeza
do homem a uma verdadeira Torre de Pisa, na qual a certeza inicial
dá origem depois a um conjunto de certezas. Se a certeza inicial
não ê muito firme todo o edifício fica, por isso, inclinado. E on-
de estã a firmeza das certezas iniciais?

Não estã de nenhum modo na inteligência. Estã no a-
mor com que o indivíduo se compenetra dessas certezas. Então nõs
temos, na base de tudo, um problema de virtude.

A respeito da contemplação no sentido natural da pa
lavra, distinguimos os seguintes pontos:

A alma nasce com uma propensão ou uma capacidade pa
ra uma determinada luz primordial. Além da capacidade que a alma
tem de contemplar a luz primordial, ela tem também a capacidade de
contemplar um conjunto de absolutos e não apenas a sua luz primor-
dial. Essa capacidade existe de um modo genérico na alma e elai vai
se determinar depois, ao longo da vida, por uma porção de circuns-
tâncias concretas dentro das quais a alma vai se desenvolver:. De
maneira que não se pode dizer que uma pessoa, igualmente fielâ luz
primordial nas duas hipóteses que seguem, cheguem a ter exatamente
a mesma personalidade em todos os pontos. Por exemplo um homem que
foi caiado por Deus com uma luz primordial x. E um príncipe „ mas
foi raptado em menino, ignora quem é, e foi educado como um bur-
guês, corno um comerciante. Êle pode ser fidelíssimo ã sua luz pri-
mordial, mas isso vai se concretizar nêle de maneira diferente, por
causa do conjunto das circunstâncias da vida que êle têve como co-
merciante. Será diferente do que se em iguais condições de fideli-
dade ele exercesse realmente o principado.
4

Temos que admitir sobre a contemplação algumas eta-
pas distintas. Há um certo eixo da contemplação que continua sem-
pre o mesmo, mas uns certos modos concretos da personalidade se re
alizar, passam a ser modos diferentes.

Isso se liga com a contemplação da seguinte manei-
ra: um homem tem a necessidade do absoluto, de conhecer o absoluto.
Êle começa então a considerar o mundo exterior que estã em tõrno
de si e a procurar o absoluto nesse mundo exterior. Quando êle es-
tã em presença de um determinado valor absoluto êle se detêm, êle
considera, êle analisa, êle julga, êle compara com outras coisas se
melhantes que jã havia visto e depois de feita a operação êle se
detêm, êle estaciona na consideração daquele assunto, por uma ação
que ê uma ação de amor. Pelo embebimento êle vai assimilando em si
aquela coisa que ele ama e que êle quer desinteressadamente. A is-
to chamamos contemplação. £ uma detenção da atenção humana, da in-
teligência humana sôbre um determinado objeto absoluto. E ao lado
dessa fixação, um amor da mente humana pelo modo concreto pelo qual
aquêle absoluto se apresenta a êle. Por isso, a personalidade dêle
e modelada pelas circunstâncias da vida.

Isso que acabo de dizer e o que imagino por contem-
plação, e a influência que essa contemplação tem na modelação da
personalidade humana.

Qual é o pecado que dentro da ordem da contempla-
ção comete o indivíduo da geração-nova?

Nos poderíamos dizer que São Tomás considerava que
o indivíduo pode ter duas espécies de intemperança; uma intemperan
ça por excesso e uma por falta.

A intemperança por falta ê o pecado que nõs chama
mos de indiferença. Quer dizer, diante de um determinado objeto
que naturalmente deve provocar a apetência, o indivíduo que ê in-
temperante por falta tem uma inapetência que faz com que êle seja

indiferente àquilo.

Se tratarmos de ver qual a substância dêsse pecado
de indiferença vemos que ela se baseia em alguns elementos. O pri-
meiro elemento ê: no amor desordenado, hã muitas, sensações elemen-
tares. E, em segundo lugar, ha uma preguiça pela qual a alma se re
cusa a fazer um movimento por onde passe da posição mais elementar
para a posição menos elementar,
é a conjugação dessas duas coisas
que faz com que uma pessoa se coloque numa posição de intemperança
por insuficiência absoluta.

NÕs podemos acrescentar que, nêsse apêgo a essa i^
nércia, a êsses valores muito elementares, o homem pode ter uma in
tensidade tremenda, de tal maneira que, quando lhe queiram tirar is
so, êle estoura. Então podemos dizer que êle não tem nem um pouco
a virtude da fortaleza, mas tem a violência explosiva de um grande
vício. Nós poderíamos dizer que Luis XVI era assim. Êle resistiu a
todos os reis da Europa, resistiu a sua mulher, a todo desprezo dos
emigrados, ã própria evidência dos fatos que lhe impunha que agis-
se, ao próprio instinto de conservação que devia lhe fazer temer o
perigo que estava correndo, a tudo isso êle resistiu, para conser-
var uns gostinhos muito elementares que êle tinha na vidinha de to
dos os dias. Muito característica ê a fuga dêle para Varennes.Quan
do voltou prêso para as Tulherias, êle passou por aquela escada
com uma cúpula de aço feita por oficiais, por cima da cabeça dêle,
que era uma ameaça tremenda. Êle passou pela escada, entrou em seu
apartamento, deixou-se cair na "bergêre" e teve essa exclamação
que deixou todo mundo atônito: "Enfim, devolta à minha casa". Quer
dizer, a fuga tinha tirado a êle uns certos prazeres elementares
que naquêle cativeiro êle tinha.

Esse vício pode dar-se em tôdas as escalas da ascen
são moral ou espiritual, ou intelectual de uma pessoa. Essa pregui
ça e êsse apêgo produzem a paralização. Mas quando isso obedece a
lei da totalidade, o indivíduo fica na estaca zero.

Quando nós passamos disso para o fenômeno da gera-
ção-nova, vemos que êste ê o princípio, o defeito que move eque do
mina tudo. E que êste defeito no geração-nova pode dar- se em dois
comprimentos de onda. Quando o geração-nova não é inteiramente ge-
ração-nova, êle tem uma certa tendência que impede alguns tipos de
sensações muito agitadas e violentas. Quando isso se realiza de um
modo completo, nem isso ê evitado.

0 homem colocado diante do universo,vê que o univer
so não existe necessariamente, ele existe mas poderia não existir.
Mas o homem vê, ao mesmo tempo, que a existir êle teria que exis-
tir sujeito necessariamente a determinados princípios que o gover-
nam. Surge daí a idéia de que, se o universo deixasse de existir
completamente, quando de nôvo começasse a existir, o império des-
ses princípios renasceria. Ora êsses princípios são relações, es-
sas relações não podem estar suspensas no vácuo absoluto, mas para
se imporem de nôvo, tem que haver uma ordem de realidade em que e-
las existem, deve ser uma ordem de realidade inteiramente distinta
dessa, inteiramente superior a essa que se impõe cada vez que essa
sai do nada. Esta ordem de realidade ê um ser, e esse ser é, neces
sàrlamente, um ser divino.

Chegamos à conclusões multo importantes para nossas
considerações sobre a sabedoria. Quando uma pessoa toma êsses prin
cípios, que necessariamente deveriam existir, desde que qualquer
coisa existisse, ela tem ao mesmo tempo uma sensação de absoluto,
de algo que se impõe por uma força que decorre de uma realidade in
visível. Essa sensação dêsse absoluto - sensação aqui é ai percep-
ção intelectlva, com uma certa detonação temperamental em face do
fato - essa percepção é o absoluto que o indivíduo deve ir procu-
rando em tôdas as coisas. Aqui estã, afinal, elaborada a defini-
ção do conceito de absoluto que se emprega quando se fala da procu
ra do absoluto. Aqui está a doutrina concreta de uma palavra muito
mal empregada, que só devemos empregar nêsse sentido, são os tais
encontros. £ quando um homem, num encontro com outro homem, ou num
encontro com outra coisa qualquer de natureza não espiritual, mas
material, percebe, por uma evidência, a presença de princípios e-
xistentes necessariamente na ordem divina e, aí, algo de aibsoluto.

Por exemplo um raciocínio muito bonito que fêz a nos
so respeito um amigo, quando nos chamaram de hipócritas. Oisse ê-
le; "Se êles não são sinceros. Deus não existe, porque se é possí-

NOTA lj Neste item designamos por "União Transformante" apenas a fa
se final do Processo do Amor. Mas.de fato, todo o PROCESSO1 DO AMOR
pode ser chamado o Processo da União Transformante.

vel levar tão longe a fidelidade à uma doutrina e não ser sincero
nela, a ordem universal que estabelece "quand même" uma correspon-
dência mínima e estãvel entre a aparência e a realidade, estaria
truncada. Se ê possível mentir tanto, e de tal maneira tomar as a-
parências de bem, então Deus não existe*1. Como "christianus alter
Christus", também em ultima análise essa é a resposta de Nosso Se-
■ nhor aos fariseus, quando 0 acusaram de ter pacto com o demônio.

Hã uma espécie de similitude pela qual o cristão éum outro Cristo.

Entra aqui um princípio de ordem universal, são os
absolutos que se trata de procurar.

Uma cultura, uma filosofia, uma arte, uma literatu-
ra, são tão mais excelentes quanto mais façam sentir os absolutos
e facilitem êsse trabalho metafísico. Essa ê a função da sociedade
temporal ao serviço da Igreja, e da arte religiosa ao serviço da I
greja.

Eu me lembro, quando era menino que, quando ouvia
tocar órgão na Missa, deduzia o seguinte; "É evidente que a Igreja
Católica e verdadeira. Quem descobriu um tal instrumento não pode
deixar de ser verdadeiro". De fato, o órgão e a música sacra que
nêle se toca são tão santos, tão direitos, que ou todo o universo
é uma fraude, ou não podem ser gerados por uma igraja falsa. São
êsses os sensos metafísicos das coisas que nos conduzem até a uma
maior facilidade no ato de fe. Não são a razão determinante do ato
de fé, mas preparam nosso espírito para êsse ato.

conhecimento de Deus

Registro uma coisa que me parece importante dentro
da criteriologia disso. £ a respeito das provas da existência de
Deus e do que poderíamos chamar o senso do divino dentro da Cria-
ção, isto é, uma impostação do espírito por onde o ponto de parti-
da fica fácil para se compreender As provas da existência de Deus.
E, diria que êsse senso do divino é uma clara percepção dos absolu
tos.

Enquanto o indivíduo não tem essa clara percepção
dos absolutos em si e ainda não embricados na idéia de Deus, apenas
com algo de absoluto que se impêe, êle não tem o espírito pronto
para compreender as provas da existência de Deus. A matéria prima
das provas da existência de Deus, ou da compreensão do papel de
Deus no universo, é uma espécie de senso bom, por onde facilmente
a alma percebe os vários absolutos que lhe vão apresentando. Esta
limpidez de ôlho para pegar os absolutos ainda sem cogitação divi-
na e uma espécie de impostação-primeir^ que o espírito igualitário
destrói muito porque é profundamente relativista,banal, pouco afeiL
to a deter-se em considerações dessas, sobretudo o, assim chamado,
espírito norte-americano.

Êste me parece o ponto dos pontos. Depois de ter per
cebido bem o que é um absoluto é que, trabalhando sobre essa no-
ção, a pessoa chega â conclusão de que deve existir alhures um en-
te que seja o próprio absoluto, que deve ser uma pessoa.

Esta espécie de senso do absoluto é muito importan-
te nêsse ponto: é preciso ter o espírito rico nessas percepções pa
ra depois ir mais adiante, e nisso hã algo de criteriológico.

Os absolutos existem, ou são uma criaçao
da fantasia, da imaginação, da poesia?

A certeza de que êles existem e o fato de que êles
só se explicam por uma outra ordem,provém, antes de tudo, dessa es
pecie de senso do absoluto que me parece ser o verdadeiro início
da Sabedoria nesta ordem de coisas. O começo da Sabedoria é essa
riqueza de sensos do absoluto.

Portas da alma

A cabeça humana pode ser considerada como uma espé-
cie de cidade com portas. Existem portas por onde a verdade a res-
peito de Deus entra dentro da mente humana. Essas várias portas são
correspondentes na alma humana às cinco portas pelas quais as gran
des provas da existência de Deus se estabelecem (1), sempre consi-
derando não tanto o papel da prova da existência de Deus, mas a no
ção do papel de Deus dentro da ordem criada do universo que temos
diante de nós. Decorre daí que a cabeça humana bem formada necess£
ta que essa verdade lhe entre por cinco portas,se bem que com mais
ou menos relevo, conforme a luz primordial de cada pessoa.

NOTA 1: Vide Apêndice, ã pag. 179.

Sinfonia geral das pravas da existência de Deus

Fizemos a exposição das outras provas da existência
de Deus, que não são as cinco provas clássicas de Sao Tomás. Obser
vando-se tais provas, vê-se que não são senão a aplicação a campos
inferiores, das mesmas considerações gerais postas nos campos supe
riores. Realmente isto ê uma coisa muito legítima, mas não abre ho
rizontes especialmente novos para nosso estudo. 0 que é muito leg£
timo o deduzirmos daí que, em cada conjunto de conhecimentos, essas
cinco provas põem-se, a sua maneira, de nôvo confirmadas cada vez
que se desce mais no campo, por visões de caráter prático e que
constitui uma espécie de sinfonia geral das provas dai existência de
Deus.

Essa sinfonia geral deve ser considerada não somen-
te no que tem de mais elevado, mas também num terreno mais baixo.
Vê-se então que, na Civilização Católica, o indivíduo vê Deus não
apenas no terreno metafísico, mas em todos os campos menores vê re
aparecer a mesma problemática. Essa sinfonia é muito importante pa
ra que haja o senso do divino em tôdas as coisas.

Eu dava então uma definição de absoluto, dizendo
que é uma coisa diante da qual o homem tem uma vivência - mas uma vi^
vencia com uma nitidez que contêm em si a evidência - de que aqui-
lo e alguma coisa, e e daquele jeito, mesmo que todos sejam contra
rios.

É este propriamente o ponto que ê a fonte de tôda a
calma e de todo o bem estar interior do homem.O homem é mais calmo
quando estã agarrado a coisas dessas e afunda em crises nervosas
quando a elas não está agarrado. £ a vivência da evidência.

Poderíamos dar exemplos: São Pedro quando conside-
rou o olhar de Nosso Senhor. Humanaiuente falando, quando Nosso Se-
nhor olhou ali para São Pedro, era um mulambo desprezado por todos.
Mas aquele olhar fêz com que São Pedro como que vivesse, como que
sentisse determinados valores morais tais, que valia a pena romper
com a Judeia - o que para êle equivalia a romper com o mundo - pa-
ra se manter fiel a isso. E, em última análise, isso o levou até a
ser crucificado de cabeça para baixo. Na sua vida inteira não viu
mais senão aquele olhar. Foi um absoluto que êle pegou com a fôrça

estonteante da evidência.

Eu dizia então que, quando o indivíduo está diante
de uma dessas evidências, êle não se preocupa em fazer filosofias
que lhe sirvam para explicar se essa evidencia é verdadeira ou fal
sa, porque ela é verdadeira. E isso é um ponto de partida para jul
gar uma filosofia, saber se ela estã ou não de acordo com a evidên
cia que o homem tocou naquêle momento.

Visto isso, formulamos o seguinte problema: uma vez
que Deus estã agindo no universo por essas várias vias que corres-
pondem ãs provas, quando o homem se encontra diante da açao de Deus
por uma dessas vias, na ponta de seu pensamento êle tem uma sensa-
ção de absoluto.

Essa sensaçao e que se trataria de analisar aqui, do
ponto de vista criteriolõgico. Coloca-se um problema criteriolõgi-
co antes do problema espiritual, em certos momentos em que o homem
sente o absoluto, isto é poesia? £ ilusão interna impalpável ou hã
algo que corresponde a uma percepção de verdade dentro disso?

A palavra sensação é suspeita para o filosofo. Pare
ce o contrário da intelecção, parecendo sentimentalismo e poesia, e
portanto quimera. Falar-se de uma sensação de absoluto parece indi
car uma idéia de quimera. Esta é a primeira impressão que temos de
destruir.

Hã uma sensação da posse da certeza, indiscutível —
mente. Não posso dizer que é a prova de que estou certo, mas há u-
ma sensação de certeza, como há uma sensação do êrro, da dúvida, há
sensação também do êrro patente. Hã também uma sensação do bem e u
ma sensação do mal bastante ligadas ao senso moral. Essas sensações
não podem ser vistas apenas como sensações, mas que se devem justi
ficar pelo raciocínio. Também é legítimo vê-la criteriològicamente
na sensação do absoluto e do contingente.

Como se dá essa sensação do absoluto e do contingen
te? Ou por via abstrativa ou por via simbólica, um homem chega à
consideração de algo que é contingente, de algo que é absoluto, e-
terno e necessário. Êle pratica um ato de intelecção, que é tão au
tênticamente um ato de intelecção quanto outro qualquer,, mas que es
tá em relação aos outros atos de intelecção como o nobre estã para
o plebeu, ou como o Rei estã para o plebeu. Porque é uma intelec-
ção de uma finalidade tão superior, tão supereminente que a sensa-
ção de certeza que se tem ê muito maior. Isto é que é prototípica-
mente pensamento e também a certeza.
Essa cognição do absoluto ge-
ra na pessoa uma sensação de certeza maior do que a sensação de
certeza gerada pela evidência
.

A própria evidência das coisas visíveis provoca uma
sensação de certeza menor do que a sensação de certeza dada pela
cognição do absoluto por essa forma. E mais fácil acreditar que ês
ses móveis não estão nesta sala, ou que eu não estou na Rua Martim
Francisco, do que eu acreditar que um certo absoluto que eu vi es-
tã errado. £ como diz Santa Teresa, que se o Céu inteiro se abris-
se para provar que a Igreja Católica é falsa, ela não acreditaria,
porque a Igreja Católica participa de certezas dêste tipo.

Essa sensação supereminente de certeza, essa verda
de, logo que ê conhecida se apresenta à vontade,à maneira de bem,
e de bem supereminente, que determina também uma plenitude da con-
dição de ser, ante a qual as outras condições não são nada. Isto é
que ê também, prototípicamente, querer. Por isso, a força da vonta
de dêle vem do fato de o homem ter absolutos. O homem que não tem
absolutos, não tem força de vontade.

Isto produz na sensibilidade uma sensação também pró
pria ã sensação que a coisa abstrativa produz na sensibilidade, e
que ê uma sensação por excelência, que repercute na câmara obscu-
ra, dada a unidade do homem e dada a simultaneidade dessas opera-
ções, que repercutem como um ato sõ, numa posição só.

A sensação do absoluto é um ato
por essência religioso

£ um ato, por essência, religioso, sobretudo quando
o homem conhece que hã, necessariamente, um ser que personifica to
dos êsses valores de modo eterno, imutável, necessário, etc., etc.
Fica claro que ê um ato religioso, que não entrou nas forças da aJL
ma por via da Revelação mas por via da razão, e participa de algum
modo da religião natural. Na ordem sobrenatural a graça dispensa
auxílios preciosos e contínuos, de maneira que êsse ato não é só
natural, mas é um ato em que entram elementos naturais em proporção
maior do que um ato, por exemplo, de adoração ao Santíssimo Sacra-
mento, que é um ato puramente sobrenatural. Se êsse ato existe, é
necessário para a revelação de planos da Providência. Então, a ver
dadeira piedade deve cultivã-lo. Não numa atitude de ciúme em rela
ção a êle, mas colocando-o em relação ao ato religioso sobrenatu-
ral, como a escadaria que está etn torno de um monumento, ou as gra
des e os jardins do monumento estão servindo de moldura para o mes
mo monumento. Elas conduzem a conhecê-lo, a amá-lo, admirá-lo ade-
quadamente.

A sensação do absoluto e o papel religioso
da sociedade temporal

Aqui está uma diferença nossa com relação à"heresia
branca", que ê ignorante e ciumenta disso. Isso também auxilia a
compreender o papel religioso da sociedade temporal. Enquanto o pa
pel da Igreja ê conduzir para a produção dêsse ato religioso sobre
natural - não se esquecendo de que ela também tem papel nêsse ou-
tro ponto - o papel da sociedade temporal ê conduzir para produzir
êsse ato religioso nêsse terreno natural, se bem que também a so-
ciedade temporal deva conduzir ao sobrenatural.

Vivência do absoluto

Daí passamos a estudar a questão da vivência do ab-
soluto. Resolvemos dar o seguinte sentido àpalavra vivência. Temos
dois tipos de homens: o homem que não se identifica com absoluto
nenhum, e o homem que faz do absoluto um patrimônio seu, o amor de
sua vida. A vivência do absoluto - segundo essa terminologia - se-
ria não o sentir o absoluto, mas, por assim dizer, o estar casado
com o absoluto. Ser um sõ com o absoluto.

Precisaríamos não confundir vivência do absoluto e
sentir o absoluto. A vivência não é sentir. A vivência seria estar
ligado profundamente a, ou
com.

Temos duas modalidades do indivíduo ver o absoluto:
primeira modalidade, pelo raciocínio e abstração; outra modalida-
de, pelos símbolos e pelos sentidos.O ver não quer dizer amar. Por
qualquer uma dessas vias o indivíduo pode ver e não amar. Pode vei
e não estar identificado, porque amor, aqui, quer dizer estar iden
tifiçado, ter simpatia com.

Ainda aí ê preciso tirar um sentido que não adota-
mos .

Viver o absoluto seria, em função de um símbolo, per
ceber o que êste símbolo contêm, com amor. Apçnas uma degustação
do que o símbolo contem não seria vivência.

Conversão aos fantasmas na vivência do absoluto

Estudando a vivência do absoluto, dizíamos que sê
hã verdadeira vivência do absoluto quando o absoluto vem unido ã
conversão aos fantasmas. Nesse momento ê que o absoluto adquire tô
da aquela vida, todo aquele senso de realidade que ele deve ter.

E o Adolpho lembrou que hã dois modos de conversão
aos fantasmas e que serão dois graus de plenitude de um conceito.
De um lado pode haver a vivência do absoluto e, portanto, o concei
to que se tem dêsse absoluto poderá ser muito reto e muito pleno,
na medida em que êsse conceito esteja de acordo com tudo quanto a
realidade apresenta, isto ê, seja um conceito que não tenha nada
de romantismo, nem nada de pura teoria cartesiana.

Por exemplo ê o que pode acontecer com um soldado
que va para a guerra e esteja indo para uma batalha pela primeira
vez. Êle tem tôda uma idéia de coragem que ê muito reta e certa,
muito realista, mas êle nunca lutou.

O segundo grau de conversão aos fantasmas seria o
da pessoa que, além de ter uma idéia muito reta do que ê coragem,
já lutou, e conhece por uma experiência viva o que ê a coragem. Es
sa volta aos fantasmas, êle a realizou jã de modo pleno. Essa pes-
soa serã a que tem um conhecimento completo daquele conceito.

Mas então, alguém que não tenha a experiência não
pode ter um conceito muito reto? Pode e até mesmo de modo mais per
feito do que aquele que lutou. £ o que acontece, por exemplo, com
Santa Teresinha, que nunca fez apostolado em missões, mas de tal mo
do se identificou com o apostolado missionário que e a padroeira
das missões. Mas aqui entramos num terreno de exceções. O normal
dos conceitos é que êles cheguem a se realizar, ao menos em parte.
A vocação contemplativa mesmo ê extraordinária, porque foge â re-
gra que predomina no comum dos homens.

Formas de adesao que se pode dar aos fantasmas
do absoluto; a união transformante

Esta questão da adesão aos fantasmas ê uma operação
muito complexa e que se compõe de várias partes. A primeira delas
seria uma espécie de degustação, logo depois vindo uma espécie de
assimilação, absorção ou nutrição do espírito com a coisa. É pro-
priamente o que chamaríamos a união transformante com a coisa. Es-
sa união transformante é de muitos modos. Em contacto com a corte-
sia de um oriental posso assimilar aquilo, e então vivo aquilo por
que me transformei em algo daquilo. Mas também posso não assimilar,
mas noto as afinidades e as diferenças harmônicas daquilo com a cor
tesia do Ocidente. Por uma espécie de processo de diferenciação eu
vivo mais plenamente a mim mesmo, e vivo mais plenamente o fundo
comum que existe entre êle e eu, e que pelo processo de diferencia
ção, ficou melhor pôsto em evidência. Posso até ter uma espécie de
vivência especial do bem em face do mal pelo contraste, e isso é
muito precioso.

Filhos das trevé

Uma observação muito importante: em face do absolu
to, a única atitude não é dessa vivência amorosa, mas é de uma re-
cusa de vivência, ou de uma vivência cheia de ódio. Odiar o absolu
to ê vê-lo, pela inteligência ou pelos sentidos, mas execrá-lo, nu
ma atitude militante,contra. Em vez de estar do lado de dentro do
muro defendendo, está do lado de fora atacando, mas de fato ê em
função do muro que as coisas se processam.

Tíbios

Além dos que combatem do lado de dentro e de fora,
existe um mundo de gente que come, bebe, dorme, move-se, faz negó-
cios e que propriamente não nega o absoluto no sentido de comba-
ter, mas nega-o no sentido de fazer abstração dêle.

E êsse próprio fazer abstração tem gamas. Porque hã
um fazer abstração que ê não tomar em consideração e não pensar
nunca, é organizar a vida como se não existisse. Participa disso o
espírito do Rotary Club.

Mas há também o papel do católico tíbio que, de fa-
to, toma em consideração o absoluto, mas toma de um modo frouxo,re
latlvo. Não hã nisso uma rejeição, um pecado de heresia, pode até
não haver um pecado mortal, mas ê o fenômeno típico da tibieza. £
uma atitude tão frequente do gênero humano e tão responsável por
certas coisas, que não pode deixar de ser classificada como atitu-
de explícita.

Há um tomar o absoluto, mas a tal distância que im-
plica numa dúvida mal enunciada. Vê-se a importância disso no Evan
gelho, onde muitas vezes Nosso Senhor estigmatiza essa posição. Por
exemplo, aqueles que nao foram às bodas do Rei não o fizeram por
inimizade, mas por não levarem o Rei a sério.

Diversos graus de dúvida

Não posso deixar de mostrar que a palavra dúvida a-
qui pode ser tomada com uma infinidade de "nuances”. Ha uma dúvida
que indiscutivelmente põe em questão uma determinada certeza. Mas ha
uma outra coisa que quase não se pode chamar dúvida, mas que tem u
ma certa participação com a dúvida.

£ o fato de que, em face de certa verdade, tem-se u
ma certeza menor do que a certeza que ela comporta. Ao final, o es
pírito, em face dessa verdade, acaba tendo uma posição dubitativa,
sem que tenha propriamente dúvida d) •

A origem disso é que o espírito humano é constituí-
do de tal maneira que êie sõ é capaz de aceitar plenamente as con-
sequências muito onerosas de uma verdade, quando a respeito desta
verdade êie tem um alto grau de certeza. Quando êie tem um grau de
certeza menor, êie não encontra ali a gasolina suficiente para a-
ceitar tõdas as coisas onerosas. Não hã duvida, mas um pequeno grau
de certeza do qual, com desembaraço, o espírito não tira as gran-
des consequências. Nasce uma posição dubidativa de algo que, em sua
raiz, não tem dúvida, £ claro que o que está no efeito estã na cau
sa. A pessoa não duvidou da verdade, mas duvidou do grau de certe-
za que ela tem. Hã um certo fermento de dúvida. Isto entra muito
na questão do católico relaxado e da não aceitação do absoluto.

NOTA 2,: Ver "Teoria da Fímbria", nas antigas reuniões de sábado dos
grupos da Fará e Martin.

O problema dentro do qual nos colocaríamos seria o
seguinte; eu estou falando do escritório do Adolpho, Temos aqui u-
mas colunas, um jarro, um lampadário, um nicho. Esses objetos es-
tão dispostos de um modo simétrico e ordenado e minha alma se a-
praz na consideração dessa ordem e dessa simetria. Mas não ê sômen
te "o apraz", pois isto seria fácil de explicar,é dizer também que
ela, ao considerar essa simetria, essa simetria como que se trans-
funde dentro dela e ela lucra um enriquecimento de simetria nisso.

Ela como que come e como que respira e, por um pro-
cesso de metabolismo, como que incorpora essa simetria que está ven
do. Explicar êsse ingerir de simetria, é o problema. A pergunta é:
como se processa êsse fenômeno?

Diríamos que minha alma é susceptível de uma deter-
minada ordenação. A ordem que exiete nas coisas é a realização, den
tro dessas coisas, dos mesmos princípios que se realizam na minha
alma, quando ela se ordena. De maneira que, na consideração das coi
sas que têm uma ordenação semelhante a que minha alma é capaz, a mi
nha alma a si mesma se ordena. Em face das coisas a alma não ê ape
nas como um espelho que reflete fugazmente as imagens e depois se
apaga, mas é como um nitrato de prata que fixa a imagem, mas ê mui^
to mais que um nitrato de prata que fixa a imagem para dar a foto-
grafia, é um corpo vivo que assimila o que esta fora, transforman-
do-o em sua substancia própria.

Essa noção lucra em riqueza, a noção de que, na rea
1idade, os princípios da estética e da ética do universo se reali-
zam por excelência na alma e, secundàriamente, nos objetos que não
a alma. De maneira que não é dizer que a alma inala esses princíp.!
os dentro de si, mas é uma coisa diversa. Ela tem potência, tôda a
capacidade de pôr as regras da ética e da estética do universo em
funcionamento dentro de si mesma, e essas coisas externas, pelo me
canismo que eu acabo de demonstrar, são como que uns excitantes des
sas potencialidades que estão em dormiencia dentro dela, e que a
levam ã grande operação de transformar de potência em ato as poten
cialidades ricas que ela tem, e de transformar isso segundo os prin
cípios da ética e da estética do universo.

O que isto resolve, e o que nao resolve?

O que Isto resolve é fácil ver. 0 que é importante é
ver o que isso não resolve. Quais são os problemas que ficam â mar
gem disso?

O primeiro problema ê o seguinte: dada a natureza
espiritual da alma humana, o que é que vem a ser propriamente as re
gras da estética do universo aplicadas a ela? Em que sentido se diz
que a ética é a matriz da estética? E em que sentido ainda mais pro
fundamente, um ser espiritual simplíssimo ê susceptível de ordem ?
E de uma ordem que não ê apenas na relação dele com Deus, mas que
também deve ser vista como uma ordem interna dentro dêle. Porque o
conceito de ordem pode parecer aplicar-se somente aos seres compos
tos, cujas partes estão bem relacionadas entre si. Ora, a alma não
é um ser composto mas simples, e sobretudo isso ê verdade com rela
ção ao anjo. Então, como pode haver essa ordem, que não e uma com-
posição de partes heterogêneas, e que existe ontològicamente? Êste
problema chega até a realização da ética e estética do universo, ês
te é um problema muito importante.

E debaixo dêle ha um outro problema, que eu reputo
mais importante ainda. A distinção entre a ordem ontológica e a mo
ral, é uma distinção muito legítima, mas é uma distinção que não po
de ser levada além dos limites que lhe são próprios. Acontece que
a ordem moral na alma tem algo de intrínsecamente ontológico, cor-
responde a uma certa realidade ontológica dentro da própria alma.
Então, qual e êsse ponto de junção, e porque importa ao MNF estu-
dar isto?

Ê porque só compreendendo bem êsse ponto de junção
que compreenderemos a-união transformante na sua essência, união
transformante essa que é o ponto de chegada de todas as transforma
ções do universo. Só podemos compreender o movimento compreendendo
o alvo para o qual o movimento tende.

Eu acentuo que se torna cada vez mais claro que uma
compreensão, a mais meticulosa, a mais apertada e estrita possível
da união transformante nos seus sentidos naturais e sobrenaturais,
ilumina extraordinariamente o nosso trabalho em todos os seus
as-
pectos .

Haveria ainda uma série de problemas relativos à ca
rência, ao amor desinteressado, etc., que deveriam ser estudados a
luz do que acabo de dizer. Porque o que é dentro disso o amor de-
sinteressado? 0 amor desinteressado se situa dentro disso, ou ha
outra área para êle que não ê bem esta? Isto é muito importante,
tanto que uma certa intuição nos faz ver que o pináculo da união
transformante está no amor desinteressado, e que é propriamente na
medida em que o homem gera o amor desinteressado, que êle se trans
forma. E o amor desinteressado é o transformante, porque é um a
to pelo qual o homem se demite de si mesmo para viver completamen-
te para outro. Aqui haveria tôda uma constelação de problemas para
tratarmos no momento oportuno.

O lv mandamento manda amar a Deus com todo o coração
e tôda a alma, etc., isto ê, amor com todas as modalidades do nos-
so amor. Portanto, também o amor interessado tem que entrar neces-
sãriamente nessa plenitude de amor, que ê a realização da união
transformante.

CAPITULO II

D PROCESSO DD ÓDIO E DO VÍCIO

Para entendermos □ mecanismo das deliberações seria
preciso ver diferentes tipos de deliberações do homem, para compre
endermos a coisa como ã. Vale aqui o exemplo da criança que vai to
mar banho de mar. A criança vai para Santos radiante para tomar ba
nho de mar . Ela põe o tnaillot em casa pensando no mar. Vai para a
praia e, quando vê o mar, se extasia. Quando chega a hora de ela
tomar contacto cora □ mar e de sentir o molhado e o frio do mar no
corpo, tôda a deliberação anterior, que era sem nuvens, fica repos
ta no espirito da criança. De tal maneira que, se uma pessoa mais
velha não fôsse exigir da criança que ela entrasse n'água e cumpris
se a deliberação, muita criança voltaria para casa.

O que prova isso? Que uma deliberação tem uma espé-
cie de profundidade tal que o ato de pô-la em prática ê por onde
as últimas camadas da própria deliberação completam a deliberação.
Assim, por exemplo, a deliberação de entrar dentro d'água; a criaii
ça sõ a completa inteiramente quando resolve resistir ao frio desa
gradãvel do primeiro contacto com a água; depois forma-se a delibe
ração integral-habitual. A criança habitua-se ao choque e todos os
dias vai tomar banho. A deliberação está pré-feita.

Então eu diria que as execuções de determinadas de-
liberações, quer pela 1^, 25, 55 ou enésima vez, requerem um novo
ato de vontade que vai até o fim. Enquanto em outros casos, o ato
de vontade fica pôsto uma vez sõ.

Eu acabaria dizendo que há certos pontos em que o

homem, a todo momento, precisa refazer a sua deliberação de nõvo.

NOTA JL: Sobre vício capital ver; "Revolução A e Revolução B- II" -
Plínio Corrêa de Oliveira.

* O vício capital ê oposto per diametrum ao ponto
mais alto da luz primordial.

* 0 ponto de maior luta , em dado momento, pode não
ser contra o vício capital. Mas no defeito passageiro que se estã
combatendo, o vício capital influencia a fundo. Ex: Salomão antes
de pecar por impureza, pecou por insapiência.

* Hã em todo espírito algo para o qual êle tende,
êsse algo é o preenchimento de uma lacuna no meu ser.0 êle aceitar
em paz a lacuna e procurar preenchê-la em paz é a luz primordial.
O revoltar-se contra ela é o vício capital. E, nêsse sentido, um é
o oposto do outro.

* Num dado momento, o vício capital pode não ser o
que mais solicita a pessoa. Mas representa sempre o maior pêso que
atrai a pessoa para o mal. Do mesmo modo que a luz primordial ê sem
pre a maior fôrça que atrai a pessoa para o bem, embora nem sempre
seja o ponto mais em foco.

* Todo homem tem uma tendência para implicar com a
sua luz primordial. A luz primordial pesa. Tem-se um "nó" especial
com o espicaçamento de nosso vício capital.

* O homem tende para seu vício capital de um modo
muito intenso. É só fazendo uma pressão muito forte em sentido con
trário ê que êle se pode vencer.

A esta pergunta, em tese pode-se afirmar que o ví-
cio, levado às suas últimas consequências, conduz o homemã uma des
personalização completa. Porque o vício é um elemento negativo.

Mas considerando as coisas nas pessoas, vê-se que a
capacidade que o vício tem de avançar numa pessoa, mesmo quando le
vado tão longe quanto ê cabível nessa pessoa,pode nao chegar a uma
despersonalização completa. Assim, por exemplo, ê o caso do demô-
nio. Nele o pecado chegou até onde podia chegar e êle ainda conser
va seu feitio pessoal próprio.

Por aí não se pode pura e simplesmente dizer que □
vício é destrutivo da personalidade. De si, ê. Mas em concreto, a
coisa é diferente.

A perda da noção pura e personificada em Deus, que a
criança tem, se faz por etapas. Não e de um momento para outro que
isso se desfaz, se desagrega na cabeça da criança. Êsse quadro vai
sendo manchado num ponto ou noutro.

A respeito dessa decadência, observamos que pode a-
contecer de a criança ir perdendo essa noção de bem de um modo mais
ou menos completo. Quando isso acontece, a criança fica mã e sabe
que o mal ê mal e o quer. E, com essa dose de deliberação isso pas
sa para o pecado de espírito.

Mas hã outra eventualidade cuja consideração ê mais
importante para nós. É a perda da noção do bem, mas feita por peda
ços. De tal modo que a criança perca a noção de uma certa faixa de
todo o conceito de bem, uma certa faixa de tõda essa personifica-
ção em Deus, mantendo de modo quase intacto outras faixas intei
ras .

Êsse caso ê o que se dá nas grandes heresias.

No primeiro caso em que essa noção de bem se perde
por inteiro a pessoa ê mã, sabe que ê ma e tem um descaramento que
a impede ate de cair em heresias, no sentido próprio da palavra.

Na segunda hipótese, entretanto, a pessoa continua
a praticar a Religião - ou uma religião - continua a querer ser boa
e a dizer-se boa. Ela começa a encontrar justificativas doutrinar^
as para todos êsses princípios errôneos.

Enquanto o primeiro cal no ateísmo mais crasso, o
segundo cai na heresia. Essa heresia pode ser considerada segundo
dois aspectos distintos:

1^ A heresia que chega até a formulação explícita.

Quando uma pessoa conserva, de sua visão-primeira,
uma fidelidade apenas em alguns pontos, e de outro lado ela não
quer aceitar outros pontos, ela cai numa contradição. Então um dos
modos de tentar superar a questão é inventar um problema criterio-
lógico.

Por aí muitas vêzea é que nascem as questões crite-
riolÕgicas. Uma pessoa que não ousa afirmar uma determinada propo-
sição errônea a respeito do mundo externo, porque vê que na lógica
do mundo externo aquilo não se encaixa, e por outro lado não quer
aceitar aquilo do mundo externo, então a saída ê inventar que o niun
do externo nao existe, por exemplo. Isto em muitas vêzes resulta de
estados de espírito das pessoas.

Transcendentais do homem, são os princípios de uma
evidência primeira. A êles correspondem determinados instintos.

O ser (Ens), que é o objeto da metafísica, ê o con-
ceito primeiro, mais simples e o mais fundamental da filosofia. A
respeito dêle só cabem definições descritivas, como: "Aquilo a que
compete existir"; ou "aquilo cuja ação ou ato ê o existir". Seu ins

NOTA 1_: Ver também: "Problemas Espirituais dos Apóstolos da Contra
-Revolução - I", Paulo Corrêa de Brito Filho.

tinto próprio é o de conservação. Dessa noção fundamental decorrem
imediatamente os chamados conceitos transcendentais que expressam
o ser de um ponto de vista particular, não se distinguindo dêle,re
aImente.

lidade - instinto para ocupar o lugar que lhe é devido na ordem do
universo.

sideram oPulchrum um conceito transcendental propriamente dito, mas
uma consequência do verum e do bonum; o pulchrum seria o esplendor
destes dois outros transcendentais.

Entretanto parece-nos legítimo apresentar opulchrum

como um transcendental autônomo, embora êle esteja fundamentado no
verum e no bonum. - Instinto para a contemplação da beleza do uni-
verso.

B• ^ma conto que contradição inicial: processo
do vício e da entrosagem satânica
(1)

0 ser ao mesmo tempo que é uno, isto ê, ê um todo

em si, e tem alteridade em relação aos outros seres, tem dentro de
si a vivência de sua própria contingência e da tendência para a per
feição. Desse fato provém uma como que contradição interna,pois si
muitâneamente tende para não se confundir com 03 outros,e tende pa
ra encontrar a plenitude de si mesmo em um absoluto exterior.

NOTA 1; 0 íten B até 0 fim, ê um resumo do processo iniciãtico fei
to pelo compilador con suas próprias palavras, baseado em material
muito maia vasto, das pastas do MNF.

A doutrina católica vê nessa como que contradição a
fonte de tôda a ordenação do universo, por onde o inferior, ao mes
mo tempo que não perde a sua personalidade, vê no superior seu mo-
delo, seu mestre, e o reflexo do Absoluto do qual êle sente falta
e que o completa. -

Mas a gnose dá a essa contradição soluções desequi-
libradas que são as fontes de todas as heresias anteriores ou pos-
teriores à Revolução. Ora, ela diz que a solução para resolver es-
sa como que contradição é o homem fechar-se completamente em si mes
mo, ora diz que a solução é o homem aniquilar-se, vendo na alteri-
dade o mal que impede o homem de integrar-se num pan coletivo.

E, oscilando de um lado para outro, a gnose vai en-
tregando assim,os homens à perdição.

Como da simples complacência chega-se ao satanismo?

Vejamos como de uma simples complacência no campo
do orgulho, ou de um afastamento delituoso de um sacrifício pedido,
a pessoa percorre um processo psicológico que a levará ao mais ex-
tremado satanismo.

2â etapa; A complacência leva â exaltação das quali
dades reais - ou imaginárias - e conduz ao desejo de preeminência.

A fuga do esforço começa a fazer sentir o jugo da
lei e da moral como insuportável.

3etapa i Tanto unui quanto outra tendência preparam
o homem para o que chamaremos o "sonho do homem". £ um estágio em que
êle se entrega a devaneios utópicos, imaginando uma ordem de coisas
onde não houvesse acima de si nenhuma autoridade e onde toda espé-
cie de freios fôsse abolida e o esforço fôsse extinto.

4ã etapa; O homem entregue a êste sonho estã prepa-
rado para aceitar a doutrina panteísta, que não é outra coisa se-
não a afirmação dessas tendências. Há então infinitos tipos de pan
teísmos, para todos os gostos. Mas que se resumem no seguinte: hou
ve no Início dos tempos uma ordem de coisas igualitária e liberal,
na qual todos os seres gozavam de uma felicidade completa pelo fa-
to de não terem entre si nenhuma desigualdade e não estarem sujei-
tos a nenhuma lei.
a

A alteridade, portanto, é apresentada como um mal.
A hierarquia como um estado de degradação e a Criação em geral co-
mo um desastre.

Assim, o homem engajado nêsse processo começa a pro
curar aniquilar a própria individualidade, ansiando pela reintegra
ção no pan coletivo.

55 etapa: Mas, detendo-se na análise de seu próprio
ser e do universo em geral, o homem panteísta levantará contra es-
Sa filosofia uma objeção mais ou menos explícita, mais ou menos vi^
vencial: "Eu ainda sinto que em mim nem tudo é mal, que eu não sou
uma criatura absoluta e completamente desprezível ã qual seja pre-
ciso aniquilar". E êle percebe também que no universo existem, a
par de coisas más que êle já via, coisas de si boas.

63 etapa; Para esta objeção a gnose tem preparada
uma explicação que, variando também conforme as necessidades, ser-
ve para lançar o entrosado num grau a mais da doutrina gnõstica.Em
suma, ê o seguinte que se diz a ele:

"Realmente hã no universo e no ser uma luta entre
dois princípios, um bom e outro mal. Entre êles houve uma luta no
início dos tempos e venceu o deus-mau, que ê tido pela Igreja Catõ
lica como Deus verdadeiro. Êle ê o Deus-hierarquia, o Deus-sacri
fício, o Deus-sacralidade. O deus bom, a Igreja convencionou cha-
mar de demónio. Mas êle é o legítimo proprietário do trono divino,
usurpado pelo deus-mau. O demônio é o deus-igualdade, o deus-liber
dade, o deus-vulgaridade, ao qual cumpre que sirvamos para que des
tronemos o usurpador".

É desnecessário dizer que o homem, quando atinje o
grau de maldade a ponto de receber esta explicação, está absoluta-
mente empedernido e, nas vias comuns da graça, sem nenhuma possibi
lidade de conversão. Portanto, as objeções que levanta não signifi
cam um desejo de volta atrás, mas de uma justificativa mais profun
da para o ódio à hierarquia, ã desigualdade e ã sacralidade.

7g etapai Perscrutando com profundidade o seu inte-
rior, o homem vera que o anseio que ele têve de bem — abeolutameote
negado - coincide com aquilo que a Igreja Católica ensina- como
bem.
Que a promessa feita, primeiro pelo panteísmo, e depois pelo demô-
nio, de satisfazerem em seu ser o desejo de plenitude nascido
da
contingência, não se realizou. Com estas questões, êle indaga qual
a verdade real das coisas.

8£ etapa; Respondendo a esta indagação se lhe diz,
então, a verdade. 0 demônio ê o demônio, Deus ê Deus. E o objetivo
ê perder as almas e acabar com a ordem da Criação. Mas se deve con
vir que este plano.de sucessivas mentiras que ê apresentado para o
entrosado, é o melhor meio para atingir este objetivo da perdição
das almas.

Apesar do demônio ser lucidíssimo, também êle se en
trega a delírios que depois procura realizar por seus sequazes.

O demônio se entrega, por outro lado,à idéia de que
êle poderá acabar com a Criação, file sabe que, perdendo as almas,
êle prejudica o Plano de Deus. Mas sabe também que a Criação, de
si mesmo glorifica seu Artífice. E por isso êle a odeia e deseja
destruí-la, desejando inclusive a sua própria destruição.A essa es
pecie de sonho correspondem as doutrinas panteístas. Outra espécie
de ilusão â qual êle se entrega é a de, não podendo destruir a Cria
ção, imaginar poder submetê-la de tal forma, que o bem seja conside
rado mal e o mal seja visto como bem, e que êle possa dominar o pró
prio Deus.

E debatendo-se paradoxalmente, ao mesmo tempo lúci-
do e desesperado entre esses dois sonhos, ele atua na História.

Vimos que muitos fenômenos se passara como a eclosão
de um ôvo por ocasião do nascimento do pinto. Aquilo se vem prepa-
rando durante uns vinte dias atê o momento em que o pinto rorape a
casca. Um observador superficial teria a impressão de que tudo se
fêz instantâneamente. Mas, para quem soubesse analisar aquilo den-
tro de uma camada mais profunda, o fenômeno teria tido uma cuidado
sa preparação.

A eclosão também dessas mudanças de natureza, sonha
das pelos evolucionlstas,que são também objeto do prõprlo sonho do
homem, se faz também da mesma forma. £ preparada uma longa e dolo-
rosa gestação, ate que, num determinado momento, o homem tem a ilu
são de que aquilo tudo se romperá e então surgirá uma nova era, um
nôvo homem dotado de uma nova natureza, como os anarquistas supõem.
Então, tudo estaria feito!

£ muito interessante vermos que essa impressão de
que tudo se fará instantaneamente, quer para os povos, quer para os
indivíduos, tem uma importância enorme. Porque cria uma sensação
de ebriedade no momento em que as pessoas, ou os povos, crêem se a
proximar dessa modificação da natureza das coisas.

Outra observação que fizemos■sobre o sonho do homem
diz respeito a um elemento contrário, que seria o outro lado da me
dalha do sonho do homem. Êsse outro lado da medalha se pode definir
como sendo o tédio em relação ã tôda ordem estabelecida, normal e
tradicional. Por exemplo, uma criança que seja solicitada a um pe-
cado qualquer, por exemplo desobedecer os pais e sair pela rua co-
mo um moleque. No momento em que tiver a tentação, essa criança,
não apenas terá a ilusão de que sair de casa e vagar pelas ruas se
ria uma delícia - o sonho do homem - mas também conceberia tal té-
dio daquela vida que sempre levou dentro de casa que, realmente,es
sa vida lhe pareceria insuportável. A rotina se transrormarã em al
go de monstruoso. Os pequenos sacrifícios que ela tenha que fazer
dentro de casa darão a impressão de cruzes pesadíssimas, impossí-
veis de suportar.

Isso também acontece com os povos. Nas vésperas da
Revolução Francesa e nos primeiros períodos da Revolução, nota-se
que o povo concebeu um tédio, uma sensação de insuportabilidade em
relação ao Ancien Regime. O mesmo acontece nas vésperas de tôdas as
revoluções. Daí vem aquele "élan" quase místico, com que quase tõ-
das as revoluções se apresentam. A isso chamaríamos o tédio, e se-
ria um elemento concomitante com o sonho do homem.

Ao mesmo tempo é fácil compreendermos que isso se
dá também com o sonho do demônio. Porque é fácil conceber que o de
mÕnio, no momento do pecado, tenha refletido sobre a eternidade que

êle passaria sujeito a Deus, e essa eternidade que lhe tenha pare-
cido insuportável. Essa eterna sujeição, nesse momento, deu-lhe a
impressão de estraçalhar-lhe a alma.

Quando o homem é colocado em face do universo, êle
toma uma atitude. Êsse repente representa um movimento de sua sen-
sibilidade, de seus equipamentos, e entra também alguma coisa rela
cionada com a vontade humana. Embora seja um ato de vontade tão pri
meiro que não se possa chamar completamente um ato de vontade.

Assim, por exemplo, uma pessoa que estã com sêde e
que vê diante de si um copo d'água, no seu primeiro movimento não
entra apenas o movimento da sêde, mas jã ê um ato de vontade incom
pleto que diz "eu quero água”. Quer dizer, entra um ato também do
espírito, da inteligência, e não um mero movimento de sêde animal
como seria o de um homem imerso no mais profundo sono. O mesmo se
passa quando o homem ê colocado diante das coisas.

Cabe ao homem, por meio da ascese, compreender que
nêsses primeiros movimentos jã entra alguma coisa de volitivo, e
reprimir isso por meio de uma grande vigilância. De maneira que, no
momento mesmo em que se pronuncia aquela apetência, êle saiba dis-
cernir se ela ê boa ou má e tomar uma posição diante dessa apetên-
cia. De maneira que êle possa rejeitar qualquer participação de sua
vontade naquele movimento que se inicia nêle. É característica
a
luta de São Francisco Xavier que, dormindo, lutava contra apetên-
cias sensuais que tentavam se apossar dele. Durante uma dessas lu-
tas o esforço de sua vontade foi tao grande que chegou a romper-se
uma veia do coração e êle têve uma hemorragia.

Vê-se aí que se fosse um homem menos virtuoso, have
ria uma espécie de meio consentimento da vontade naquilo. Ainda que

HOTA lj Ver também "Carta Pastoral Sobre os Problemas do Apostola-
do Moderno", Parte III, n? 37 - D. Antonio de Castro Mayer.

fosse ura consentimento sem culpa, por estar dormindo. Apesar disso
haveria um meio consentimento da vontade que Lhe teria sido possí-
vel suspender, a tal ponto que Sao Francisco Xavier suspendeu.

Então nós chegamos à conclusão de que o que caracte
riza o ato de vontade nêsse primeiro movimento, não ê um ato de von
tade plena. £ um primeiro ato da vontade incompleto e condicional,
em que a pessoa diz "quero", mas não e um "quero" tal que a pessoa
esteja resolvida até o fira a fazer aquele ato. Mas é um "quero" co
mo quem diz: "isto eu estou querendo, eu vou fazer o debate moral
do assunto para ver se convém"; mas houve um ato de vontade.

Desta primeira idéia de um ato de vontade condicio-
nado, tira-se uma outra coisa que é a Doutrina da Execração.

Para que a pessoa possa resistir a esses primeiros
movinentos maus da vontade, ela precisa estar num estado normal de
execração e vigilância contra o mal que possa aparecer. De maneira
que, no próprio momento em que a volição mã se dê, a pessoa jã fa-
ça um ato contrário repudiando. E, no próprio nascedouro, jã fica
expungida daquilo, qualquer participação da vontade.

Essa execraçao vigilante é uma coisa indispensável
para a vida de virtude. Exatamente isso é uma das coisas que de-
marcara a diferença entre a mentalidade do católico ultramontano e
a do católico tipo democracia-cristã. O católico ultramontano sabe
que tem pecado original e que ê preciso uma atitude de execração
vigilante e desconfiada. O democrata-cristão, de mentalidade é ala
ranjado, acha que não ê preciso tanto exagero. Diante do mal, tem
tõdas as espécies de neutralidades, distinções, sub-distinções e,
no final das contas, é complacente em relação ao mal. Aqui nós en-
contramos um dos traços mais nítidos da demarcação entre a mentali
dade liberal e a ultramontana.

Vamos agora fazer uma aplicação dos princípios da
Doutrina da Execração, fia história de são Remy. Em primeiro lugar,
quando São Remy estava evangelizando os francos e êie falava a res
peito da Paixão de Cristo, os francos, todos de pê, levantando
suas lanças gritavam: "Por quê não estávamos lã?". E Clóvis dizia;

"Por quê eu não estava lá com meus francos?".

Vê-se uma profunda execração por parte dêles de to-
do o mal que os judeus fizeram.

* -                                                                                                                                                  J,

Outro fato: quando São Remy batizou Clõvis êle dis-
se: "Curva a cabeça sicambro, queima o que adoraste e adora o que
queimaste!".
3»/                                                         •

Aqui estão dois princípios da Doutrinada Execração,
que São Remy deu em forma lapidar muito bem. Ou seja, trata-se de
detestar aquilo que a gente gostava, a tal ponto que a gente quei-
ma. E gostar daquilo que a gente perseguia a tal ponto que a gente
adora. É propriamente isso. O queimar é a forma mais completa de
destruição. Eu não conheço melhor formulação do princípio da exe-
cração do que esta.

•;Quando a pessoa tem essa execração do mal bem fir-
me, ela pode , em certas zonas heterogêneas da alma que obedecem mais
ou menos lentamente às ordens da vontade, ter nêste campo muitas ml
sérias, muitas imperfeições, mas pode se esperar tudo dessa alma,
na ordem de ascensão individual, desde que ela execre, de fato, a-
quilo que elã de vez em quando, à maneira de fraqueza, de restos
e de vestígios pode fazê-la cair e custar muito para que ela se
descole daquilo.

Êsse princípio nos leva a compreender determinadas
afirmações de Nosso Senhor a respeita da misericórdia para cam o
[xjcador e a severidade para com o fariseu. Os pecadores arrependi-
dos que Nosso Senhor recebia tão bem, eram os pecadores que tinham
uma execração, de fato, de todo o mal que tinham feito. E em rela-
ção a cujos males e misérias, Nosso Serthor tinha uma misericórdia
muito grande em atenção a essa execração. Pelo contrário, o fari-
seu é o que não tem execração. Êle tem um amor pela coisa ruim e,
nas aparências, procura impingir aquilo como coisa boa.

O lado pelo qual nós temos uma diferença fundamen
tal com os liberais, é que êles querem aplicar os princípios da mi
sericórdia a fariseus que não têm execração nenhuma. E nós somos
cheios de compreensão para as pessoas que podem ter fraquezas, mas
que têm, de fato, essa execração. Nós, fazemos um discernimento, co
mo Nosso Senhor. Nosso Senhor não aplicava êsse princípio indiscer
nídaiuente. Daí a gente compreende as palavras de fogo d£le em algu

mas horas e as palavras de mel em outras.

A execração e propriamente o que constitui o verda-
deiro ultramontano. Isto ê, aquele que tem uma detestação total
do mal, e por isso tem o amor verdadeiro ao bem. O verdadeiro test
do amor ao bem é a execração ao mal, porque quando uma pessoa não
tem essa execração ao mal em sua totalidade, ela de algum modo a-
ceita o princípio pelo qual se pode amar coisas que tem razão de
mal, e ela comete nisso um pecado maior do que o pecado direto de
amar as coisas más. É que ela admite o princípio de que o mal, em
alguns de seus aspectos, em alguns de seus lados não deve ser exe-
crado. Tem direito de existência, e, com isso, implicitamente ela
admitiu todo o resto.

. F. 0 "estado de execração"

Êsse princípio da execração nos leva a reconhecer
que pode haver um "estado de execração". Uma grande elevação de in
tenções, de propósitos e de idéias que apenas lentamente e em velo
cidades desiguais vão embebendo as várias partes da alma.

Isso é muito importante para mostrar o papel da von
tade dentro da vida espiritual. Acaba sendo verdade que nenhum cam
po da alma é isento ou alheio ao império da vontade. Embora êsse ira
pêrio possa realizar-se por vias e em velocidades diferentes, sal-
vo graças excepcionais de Nosso Senhor, que possam acelerar muito
isso, com o que é preciso sempre contar.

Hã dois modos de ser da execração. Um é o modo de e
xecrar - não verdadeiro - de uma lavadeira do século XVI que, pas-
sando diante de algum edifício renascentista, olhasse e dissesse:
"isto não é direito, antigamente não era assim, etc.". Ela não fa-
ria um ato de verdadeira execração. Seria preciso que ela condenas
se aquilo numa atitude. "Se isso não é direito eu rejeito isso, re
jeito as influências que isso exerce sõbre mim, rejeito tôdas as
coisas que são assim". Coisa que, de um modo confuso e implícito,
qualquer lavadeira pode pensar.

A verdadeira execração ê cheia de transigência para
com as fraquezas do execrante, ela é transigente enquanto não tran
sige com qualquer diminuição da execração. Assim, a intransigência
vai até o fim. £ claro também que o abuso da caridade pode compro-
meter o princípio da execração. E preciso muito Cuidado para isso
não cair numa "caridosa".

O católico liberal ê exatamente o contrário. E aquê
le que não admite o princípio da execração. Êle admite o princípio
guando êle
ê pouco liberal. A ala direita do liberal tem muitas e-
xecrações em muitos pontos particulares. Mas êle não tem nenhuma e
xecração do total e por isso êle é um liberal, embora por. muitas
razões possa falar muito fogosamente contra uma porção de coisas
ruins, possa até reagir, etc. Êle ê como um balde que estã inteiri
nho, mas é furado num ponto e portanto não serve para nada.

& 0 N A Ll.Ll.0

Conclusão

Encerrando êsse estudo, que procurou ser ao mesmo
tempo um resumo e uma compilação> ocorre-nos considerar a profunda
consonância que a doutrina aqui exposta tem com os ensinamentos da
Doutrina Católica.

Consonância esta que, sendo “um eco fidelíssimo" de
tudo o que a Igreja jã ensinou, tira dêsse ensinamento consequên-
cias e desdobramentos de uma originalidade e profundidade sem pre-
cedentes. Por exemplo, a explicitação da zona mais recôndita da al.
ma, que é descrita com detalhes que chegam a espantar, tal sua pre
cisão e subtileza; ou ainda a distinção magistral entre a primeira
e a segunda cabeças; ou ainda tôda a concatenação lógica da Lei do
Amor, que nos mostra ser a alienação o fulcro do Processo Humano e,
por consequência, da História.

Que Nossa Senhora faça com que pelo menos alguns su
bam ao alto dessa montanha sagrada, dêsse mirante profético, é o
que de tôda alma Lhe rogamos.

Ad majorem Mariae Gloriam

13 de dezembro de 1972

& p E M D t e E

AS CINCO VIAS DE SÃO TOMÁS

ou

AS PROVAS DA EXISTÊNCIA DE DEUS

ia via; Movimento (motor imóvel)

2ã via: Causa eficiente

35 via: Contingência

jL. Verificamos que existem coisas contingentes, is-
to é, que podem ser ou não.

Mas nesse caso também agora nada existiria,o que
ê falso.

Apendice
las.

5S: Governo das coisas

Verificamos que há seres irracionais que operam
em ordem a um fim, pois agem sempre ou quase sempre do mesmo modo
e alcançam aquilo que ê ótimo.

2^ Ora, esses seres não podem chegar a seu fim por
acaso, mas tem que ser orientados por algum ser cognoscente e in-
teligente como a flecha pelo arqueiro.

f N D I G E

PROCESSO HUMftNQ

ADVERTÊNCIA. .....

APRESENTAÇÃO............ ..............

ESQUEMA GERAL. ..........*

INTRODUÇÃO..................

O que é o MNF?........................................15

PARTE I: NOÇOES FUNDAMENTAIS.................................  .

Capítulo I: Considerações sobre o Processo Humano

Capítulo II: Estudo da Contingência Humana

Capítulo III: O que é a Procura do Absoluto?....!........  4

Capítulo IV: A influência das tendências nos atos humanos

S. Os vetores e a graça

PARTE II: 0 PROCESSO DO CONHECIMENTO..

Capítulo I: Teoria da Visão-Primeira

Capítulo II: Problemas do Consciente e do Subconsciente

Capítulo III: O que é na alma a câmara obscura?

Capítulo IV: Processo do Pensamento

. D. As figuras, imagens e fantasias..

A. Conhecimento abstrativo e simbólico

J. Uma coisa pode simbolizar multas outras............ 96

Capítulo V: Como deve ser o conhecimento normal do homem?

l.'Bom senso e senso católico

J. Metafísica Viva e os símbolos

PARTE IIIx PROCESSO DO ÕDIO E DO AMOR

Capítulo I: O Processo do Amor.

J. O raciocínio.....

K. Como vai nascendo para a criança a noção de um Deus
pessoal, atrás da noção de bem e de mal?..

L.Como a criança intui Deus por tras das criaturas?.127

A. Luz primordial

B. Fluxo vital............................

C. As vertentes do homem

G. A evidência do absoluto................

Capítulo II: O Processo do õdio e do Vício.....................161

A. Os transcendentais do homem e seus instintos cor-
respondentes .

nascente... ♦......................*

CONCLUSÃO.........    *

APÊNDICE............................................

Índice